Paulo Rebêlo // Terra Magazine
Meu ícone máximo de romantismo sempre foi o casal que divide livros na cabeceira da cama. De pijamão, luminárias de cada lado, folheando as páginas até o sono chegar.
Intermitentes, elas coçam nosso bucho peludo e nós a cutucamos com o pé ao escutar o primeiro ronco delas.
Claro que já tentamos imitar a bucólica cena. E claro que nunca funcionou.
Bons livros devem ser tratados como bons filmes. Você até pode interromper, desde que seja algo importante. E nada é tão importante a ponto de interromper mais de uma vez. Ou duas, se for o apocalipse.
Veja bem, quando estamos lendo, não queremos saber o que você está lendo. Conte depois. Na hora do almoço, no bar, amanhã quando acordar. Em qualquer outro horário.
Não pergunte se estamos com fome ou sede. Agradecemos o carinho e a ternura, mas é uma questão cartesiana: se a gente tem sede, a gente bebe. Se temos fome, vamos até a cozinha e voltamos com uma bolacha ou um pedaço de bife entre os dentes. Às vezes, rosnando.
Por tabela, é justo presumir que, se estamos deitados tentando ler, não estamos com fome e nem com sede.
Temos muito interesse no seu corpinho, nas suas ideias e opiniões sobre o mundo, a sociedade, o big brother brasil, a física quântica e a conspiração do governo americano sobre a existência de vida alienígena. Só não exatamente agora.
Veja bem, nenhuma conclusão cientificamente comprovada sobre a vizinha sirigaita é tão importante que não possa esperar até o café da manhã. De amanhã.
A gente até gosta de falar como foi nosso dia de trabalho e os planos etílicos para o fim de semana, mas nos perdoe, pois infelizmente somos seres muito limitados. Não conseguimos falar e ler ao mesmo tempo. Peço desculpas em nome da espécie. É um dos nossos inúmeros defeitos de fábrica.
Evidente, temos nossa parcela de culpa. Livros não trazem fotos ou imagens coloridas por um propósito muito claro: concentração. Logo, é uma disputa inglória se você está aqui ao lado com uma das centenas de suas revistas femininas com fotos de modelos de biquini, decotes e vestidinhos floridos em poses pouco literárias. Assim, nossa últi-ma gota de romantismo é página virada.
Uma outra opção (crianças, não tentem fazer isso em casa) é o que costumo chamar de leitura 69.
É isso mesmo que você pensou. Mas sempre há o risco de não funcionar, porque ela pode não alcançar o seu bucho peludo e ficar coçando outra coisa. Era uma vez uma noite de leitura.
Se a gente insinuar que você pode ter DDA (distúrbio de déficit de atenção) por não conseguir ler meia hora com a matraca fechada, bem capaz de irmos dormir no sofá ou você jogar o livro pela janela. Quando isso acontece, impera a Lei de Murphy: sempre é um livro que você não leu ainda.
Sabe o que é, a exemplo de tantas pessoas que passaram pelo Laserdisc e viram o videocassete (VCR) nascer, também sofremos lavagem cerebral dos filmes americanos de uma época onde não havia internet, dois empregos, expedientes prolongados, con-tratos de pessoa jurídica, participação nos lucros e… DDA generalizado. Fora a preocupação constante com a sua programação neuro-linguística.
A gente conseguia ler em paz e achava bacana os casais gringos do cinema lendo com óculos fundo de garrafa e dividindo um abajur retrô. Também sempre achei bacana quando os gringos puxavam do congelador um pacote e jogavam dentro do microondas com embalagem e tudo. Por aqui, não havia a cultura de comida congelada, aliás, sequer existia microondas.
Do jeito que as coisas estão hoje, talvez o maior romântico da atualidade seja o Steve Jobs. Ou seja lá quem tiver inventado o notebook com aquele teclado retroiluminado. Sem ele, nossa vida de leitura (e convivência) noturna seria bem mais difícil.
Com esse pequeno milagre chamado teclado retroiluminado, a gente não precisa mais de abajur enquanto elas dormem e balbuciam sonâmbulas sobre a luz acesa.
Podemos ficar inertes no escuro, digitando estes parcos rabiscos no silêncio da madrugada, sem atrapalhar ninguém, sem precisar de energia elétrica, apenas lendo uma coleção inteira de livros em PDF e escrevendo anotações de vendaval.
Não é a mesma sensação do livro, você me diz. De fato. Mas é o mais próximo que vamos conseguir chegar daquele romantismo de cabeceira. De vale-brinde, agora vocês não precisam mais reclamar que, ao primeiro ronco, a gente aproveita para fugir da cama e ir trabalhar na sala…
Até porque os meios mudam, mas as contas a pagar permanecem.
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