Aumento de preços e instabilidade irritam a população, mas ainda há expectativa de futuro melhor dentro do bloco. Com reformas empacadas e herança socialista, cobra-se por tudo -de sachê de catchup a fatia de pão- e ainda se espera ação estatal.
Paulo Rebêlo
Folha de S. Paulo – 24.set.2006 ( link original )
BUDAPESTE – Domingo, 13h. Restaurantes de culinária internacional estão lotados de turistas em quase toda a extensão da Andrássy Ut, a avenida mais famosa, cara e cosmopolita da capital húngara. Não à toa, ela é apelidada pelos estrangeiros de “Champs-Élysées de Budapeste”.
Em pares ou pequenos grupos, indiferentes às violentas manifestações ocorridas em Budapeste na última semana, os turistas não vêem o tempo passar nesta parte da cidade de arquitetura neo-renascentista, que reúne numa única quadra restaurantes italiano e chinês, salão de beleza, banco, livraria, agência de viagens e museu.
Na metade dos 2,5 km da Andrássy, um observador desavisado pode se perguntar se continua no mesmo país. No cruzamento do Oktogon, entre a Andrássy Ut e a Teréz Korút, há um tumulto numa das várias filiais do Burger King na cidade.
O que de longe parecia mais um protesto não passava de um lugar lotado, com uma longa fila no caixa e várias pessoas comendo em pé. Uma mulher de meia idade reclama com o marido, em espanhol, que aquela comida não é saudável e que comer fast-food em Budapeste é um pecado. Resignado, ele diz que ali “é mais barato e rápido”. Na hora de pagar, os dois se surpreendem quando pedem catchup ao caixa: custa 60 florins. No concorrente McDonald’s, custa 100. Geralmente, 100 florins equivalem a R$ 1.
Do sachê de catchup ao potinho de manteiga no bufê, passando por uma fatia de pão extra no couvert, tudo é contado e cobrado nos menores detalhes. São algumas das heranças de um socialismo não muito distante no país (caiu em 1989), que, entre as nações do Leste Europeu, é um dos que mais sente o choque de capitalismo acelerado dos últimos anos. Isso se agravou a partir de 2004, quando a Hungria ingressou na União Européia sob a promessa de promover, com urgência, reformas socioeconômicas, contenção dos gastos públicos e equilíbrio orçamentário.
Aumento de impostos
Dentro do Burger King, do McDonald’s e da Pizza Hut, o casal de mexicanos citado acima é uma exceção. O comum é esses lugares estarem repletos de húngaros, para surpresa dos turistas que adoram a comida local. “De que adianta a nossa comida ser ótima se a gente não pode pagar?”, pergunta o estudante Oliver Jurszik. “Se quiser comer na rua, os únicos lugares que não aumentaram tanto os preços são essas lanchonetes e, claro, os restaurantes chineses, onde a gente nunca sabe o que está comendo.”
Ele não é voz isolada. Mas, ao mesmo tempo, não é consenso que a entrada para a União Européia é a única responsável pela subida de preços. Antes do aumento de 30% nos impostos, anunciado pelo governo neste mês, os dois últimos anos foram significativos em inflação, para húngaros e turistas, que achavam que ainda encontrariam em Budapeste o paraíso de preços baixos.
“Antes mesmo da UE, as pessoas já sabiam que isso ocorreria. O problema é que há uma distância grande entre as mentalidades. As mudanças para uma economia de mercado estão sendo mais rápidas do que boa parte da população consegue acompanhar”, avalia a professora de inglês Ildiko Csipo. “O dinheiro está circulando, é assim que funciona. Mais impostos, produtos mais caros, os jovens hoje têm mais oportunidades de crescer profissionalmente, mas as gerações anteriores ficaram para trás”, lamenta Ildiko, que não vê a hora de terminar a pós-graduação e sair do país. “As coisas mudam de uma hora para outra, impostos sobem e descem do nada, preços sobem sem critério. Ninguém consegue se planejar”, diz.
A herança do socialismo na Hungria não se limita às cobranças por catchup e potinhos de manteiga. “Há gerações inteiras que ainda esperam receber do Estado alimentação, sistema de saúde, educação e aposentadorias, tudo de graça”, relata o embaixador brasileiro, José Augusto Lindgren Alves. Para o futuro, porém, ele é otimista. “Com as reformas, a Hungria pode ser uma nação significativa mundialmente. Não será um poder, mas pode ficar em posição confortável na Europa”, estima.
De modo geral, as mudanças e a escalada de preços na Hungria são similares às de outros países que aderiram à UE. Contudo, com as declarações do primeiro-ministro Ferenc Gyurcsany de que o governo maquiou os números da economia para que ele fosse reeleito e de que nenhuma das reformas foi realmente feita, a situação política hoje é delicada.
“Apesar das boas expectativas, as principais reformas estruturais na Hungria vão levar talvez 15, 20 anos para produzir os frutos de estar na UE”, diz o engenheiro de tecnologia Krisztián Katona.
Direita radical ganha força em atos e eleições —
No próximo domingo, haverá eleições municipais na Hungria. O foco das atenções é a capital, Budapeste, cujo prefeito, Gábor Demszky, está há 16 anos no cargo (a reeleição ilimitada é permitida no país) e é aliado do primeiro-ministro Ferenc Gyurcsany. Com os protestos contra Gyurcsany, do Partido Socialista, na última semana, o partido de extrema-direita mais conhecido, o Fidesz, tem ganho apoio popular.
Em fita vazada para a imprensa, Gyurcsany foi flagrado admitindo que o governo maquiou números da economia e mentiu para ganhar as eleições de abril, o que detonou as manifestações. “E agora”, diz ele na gravação, “todos devem se empenhar para promover as reformas orçamentárias necessárias”. O Fidesz é acusado pelo governo de encorajar grupos radicais da extrema-direita, como os neonazistas, a promover atos violentos durante os protestos. O partido responde oficialmente que “a idéia é um absurdo, apenas mostra que o país está sem controle e governo”.
Mais protestos
Ontem, cerca de 20.000 manifestantes, alguns deles ligados a outro grupo de extrema direita, o Jobbik, se reuniram em frente ao Parlamento. Um dos oradores do ato foi um bispo protestante, Laszlo Toekes, conhecido pela militância ultranacionalista. “Quem é culpado?”, perguntou ele, “quem incendeia um carro ou quem destrói a nação inteira?”
“Somos um país pacífico, as pessoas não gostam de violência, muita gente que eu conheço nem sequer sabia que existiam neonazistas aqui”, lamenta o empresário Levente Nanasy. “Falam em fazer reformas duras, mas e o que estava ocorrendo antes, esses aumentos de impostos? Para onde foi o dinheiro?”, indaga.
Nesta semana, Gyurcsany e uma comitiva oficial devem levar a Bruxelas (sede da Comissão Européia) a versão final do plano de reformas que o governo deve implementar, a fim de que a Hungria cumpra as exigências da União Européia para reduzir seu déficit público, um dos maiores do bloco. Em entrevista à agência estatal, o premiê voltou a afirmar que não haverá novos aumentos de impostos. A população húngara, no entanto, já ouviu essa promessa outra vezes.