Um doguinho feliz em Jatobá (PE), 2008.

Fotomemórias Ranzinzas #001 – Jatobá e o universo de pessoas desaparecidas no Brasil

Paulo Rebêlo | junho 2023

Município de Jatobá, Sertão de Pernambuco, ano 2008. A felicidade, pose e malemolência desse doguinho no colo de sua dona/tutora. Foi uma foto descompromissada, que nada tinha a ver com o trabalho que estava fazendo ali. Essa é uma das imagens que sempre olho quando quero lembrar que projetos antigos não devem ser esquecidos, como é o caso dessas fotomemórias ranzinzas e tantos outros, como alguns livros que às vezes parece que nunca vou conseguir terminar, mesmo depois de décadas de anotações, memórias e gravações. Por isso escolhi para ser a primeira foto deste pequeno projeto pessoal de memórias fotográficas.

Contexto — 

Estava cobrindo, para o jornal, o périplo de um projeto patrocinado pela Petrobras via edital. Em Jatobá, e várias outras cidades do interior do Nordeste, uma equipe levava filmes nacionais a municípios que nunca tiveram a experiência do cinema. A tela era inflável, enorme, uma infraestrutura incrível e eficiente que demandava vários profissionais para montar, operar e rodar. Na reportagem publicada na época, há algumas fotos da tela e da montagem. Também coloquei outras fotos, em alta resolução, neste link aqui, das quais apenas uma parte foi publicada.

A foto — 

Nesse momento da imagem, meu olhar estava totalmente voltado para um gatinho branco que perambulava ali perto das gravações. Em geral, antes da exibição dos filmes à noite, a equipe do projeto fazia entrevistas em áudio e gravações em vídeo com a população de cada cidade. Servia para documentação e prestação de contas, claro, mas também para exibir antes dos filmes. As pessoas se viam na tela grande, como se fossem atores e atrizes de cinema. Foi uma ideia muito sensacional que eles tiveram na concepção do projeto. E ali em Jatobá, mais uma vez, foi o maior sucesso. E apesar de toda minha rabugice infinita sobre a real eficácia de ações desse tipo num contexto de subdesenvolvimento tripartite (social, econômico e estrutural), admito com alegria e satisfação que eram momentos bem emocionantes de verdade. E que nunca vão desaparecer da memória daquelas pessoas. Nem da minha.

Eu acompanhava a equipe para registrar os bastidores, ouvir as conversas, observar e fazer  anotações para o jornal, tudo bem básico e mais do mesmo, mas também aproveitei para fazer minhas fotinhas para arquivo pessoal com imagens que me interessavam. Nesse dia, um gatinho branco estava meio assustado com toda a movimentação e algumas crianças perceberam minha “perseguição silenciosa” atrás do felino, com a câmera na mão. Daí aconteceu o que sempre acontece em situações assim: elas queriam sair na foto.

Estavam com vergonha, mas essa guria segurando o doguinho puxou as outras e veio com o cachorro no colo. Foi uma diversão. Havia várias outras crianças por perto, envergonhadas e desconfiadas, mas depois criaram coragem e se aproximaram para mais fotos, acompanhadas dos pais e parentes.

Memórias — 

Gatinho branco em Jatobá, Sertão de Pernambuco.Nessa experiência de Jatobá, em 2008, foi a segunda vez que tive acesso direto e bem completo a uma tema que me fascina desde criança: pessoas desaparecidas.

Acho fascinante e assustador por ene motivos, que não vêm ao caso agora, pois seriam longos devaneios. Era um assunto que eu resolvi começar a estudar mais a fundo no ano anterior, depois de uma outra reportagem no interior, em 2007.

Em 2008, eu já havia começado a investigar algumas pistas, por conta própria, mas sem muito sucesso e, principalmente, sem tempo. Em Pernambuco e na Paraíba, havia encontrado algumas famílias que me relataram detalhes — inclusive financeiros — sobre o desaparecimento de crianças e adolescentes no conhecido esquema de tráfico internacional de crianças que assola o mundo até hoje. Mas, em Jatobá, aumentou meu leque de possibilidades com pequenas trilhas de informação que poderia seguir, se tivesse tempo, em outros Estados.

Crianças reunidas em Jatobá, Sertão de Pernambuco.O assunto expandiu-se com detalhes e situações que, até então, eu não havia parado para analisar. Como eu não participava da montagem da tela e nem fazia parte do projeto da Petrobras, tinha tempo sobrando durante o dia para minhas incursões, aproveitei o pouco tempo que sobrava.

Como sempre, quis a vida que esse projeto nunca fosse adiante, nem no jornal e nem no livro que comecei a montar sobre o assunto. A cada mês, passava mais tempo no jornal e nos outros dois empregos que tinha, então o tempo fez aquilo que sabe fazer melhor: desapareceu. Igual às pessoas que eu estava procurando. Um ano depois, eu já estava fora de todo esse contexto, em Brasília. Comecei a fazer pequenas incursões em questões de desaparecimento e máfias religiosas — principalmente as esotéricas — nos arredores da capital federal, sempre lembrando de Jatobá e dessa foto do cachorrinho sorridente. Hoje, essas crianças devem ser pais e mães de família.

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