Paulo Rebêlo | nov 2023 | jan 2024 | Medium
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A gente costuma dizer que ninguém deve ter raiva de quem morreu.
Eu tenho. Quando vejo amigos queridos desesperados, sem saber o que fazer e sendo cutilados financeiramente por funerárias, advogados, empresas fantasmas e golpes de todo tipo, tenho muita raiva, sim. E anoto o nome de todos esses defuntos para que eu mesmo vá entregar uma carta de despejo quando for minha vez de chegar onde eles estão, seja lá onde for.
Os boletos nunca morrem, mas a gente vai morrer um dia. Chega a ser pueril de tão óbvio, mas por que temos tanta dificuldade em pensar sobre a própria morte?
Não é um assunto mórbido, é apenas uma questão pragmática. Não precisamos conversar sobre isso e, muito menos, discorrer em filosofias orientais ou teorias ocidentais. Deveríamos, contudo, planejar um pouco essa vã esperança do tempo porvir. E escrever para programar um tantinho de paz a quem fica.
Olha, também não importa sua idade, porque sempre seremos novos demais para morrer.
Para sua saúde de ferro, recomendo uma rápida visita à sala de espera do hospital mais próximo. Público ou privado, grande ou pequeno, você vai encontrar a mesma cena: um monte de gente que ontem foi dormir saudável e hoje acordou doente. Boa parte não vai chegar até amanhã.
Pensamos demais sobre o que ainda queremos fazer, talvez a gente até aceite que alguma viagem ou aventura não seja mais possível porque simplesmente não vai dar mais tempo ou porque estamos cansados demais. É que a gente perde tanto tempo na subjetividade da nossa essência e esquecemos de agir sobre a objetividade da nossa ausência.
Não gosto daquela poesia de palavras não ditas e desculpas não proferidas, mas gosto menos ainda dos ciclones de pendências e complicações que ficam para quem fica. Quase ninguém pensa em deixar uma simples carta antes de morrer.
Veja só, não precisa ser lúdica e nem poética. Não precisa nem ter amor. Porque sim, tem gente muito ruim no mundo e para essas pessoas, às vezes, só temos desprezo ou queremos mesmo é ignorar a existência. Não tenha vergonha. Se é verdade que somos todos humanos, também é verdade que podemos ser humanos mais pragmáticos.
Por exemplo, eu gostaria de saber, lá do além, que minha família tenha ciência de quem são algumas figuras nefastas que tanto mal fizeram às pessoas que gosto, para que ninguém aceite pêsames ou lágrimas de crocodilo. Imagine a cena:
Ei, você aí. Não pode entrar neste velório, o morto não deixa. O morto não falou isso, mas escreveu. Agora faz favor e vaza daqui.
Minha carta antes de morrer é bem pequena, tem apenas três parágrafos, dos quais dois são de natureza prática. Sim, talvez haja meia dúzia de pessoas que eu gostaria que ficassem bem longe do meu velório, mas o problema é que não quero um velório, nem enterro, nem nada. Desde guri, acho que é uma das simbologias mais inúteis (e bizonhas) que existe.
Ninguém sabe quando, mas todos nós sabemos que Ela vai chegar e que pode ser amanhã mesmo. Do mais sábio ao mais alienado, todo ser humano conhece de perto a aleatorieade do fim. A frase é sempre a mesma:
fulano estava ótimo, de repente morreu.
O que nos faz diferente de fulano? Daqui a pouco, talvez esse fulano seja eu ou você. E o que você gostaria que a gente soubesse quando você se for?
A herança das minhas dívidas –
Você entra no elevador do edifício para ir trabalhar e talvez nunca mais volte para casa. Já vi acontecer tantas vezes. Essa aleatoriedade da sobrevivência está conosco 24h por dia.
Eu escrevo uma pequena carta antes de morrer desde meus 17 anos de idade. Sua motivação pode ser outra (mais poética, por favor), mas a minha motivação sempre foi o medo de ir embora e deixar meus suados caraminguás parados no banco, sem ninguém poder usufruir do pouco que meus caracteres regularmente bêbados me proveram.
Uma carta antes de morrer não é um testamento, mas tem validade jurídica e pode ser registrada em cartório e até assinada com certificado digital reconhecido pelo Governo Federal e pela Justiça Brasileira.
Se você está preocupado com testamento, deve ser rico ou ter muitos bens materiais registrados em seu nome. Sendo este o seu caso, consulte um advogado, tire o caranguejo do seu bolso e pague o efetivo para deixar um pouco de paz às pessoas que ficam e que você ama. Amanhã você pode pegar uma gripe, depois de amanhã é internado, e daqui a três dias sua família me contrata para escrever seu obituário com muitos exageros de bondade e pinceladas de solidariedade que ninguém nunca viu, já pensou?
Eu costumava ter um veículo registrado no meu nome, hoje em dia até isso está alienado ao banco. Registrado, mesmo, as pessoas só vão encontrar os malditos boletos. Desconfio que boletos bancários são seres de luz que nunca morrem.
Minha pequena carta, de natureza prática, contém efetivamente senhas de acesso rápido e orientações objetivas para que as pessoas queridas possam tentar ser mais rápidas do que o Leão da Receita e do que o Leviatã do Estado, pois ambos certamente vão querer morder e se deliciar com os míseros cruzeiros na conta.
Torço que os parentes façam jus aos pedidos e não gastem dinheiro em vão com as inutilidades burocráticas da morte, quer dizer, ao menos da minha morte. A deles e a de vocês, não é da minha conta.
Morrer com tranquilidade deve ser ótimo, pena que a gente não vai estar mais aqui para ver os parentes aliviados em saber quem vai herdar minhas redes coloridas e meus livros encalhados com teias de aranha.
FOTOGRAFIA EM DESTAQUE
Outono de 2022.
Arredores de Mistissini, Canadá.
Fujifilm XT5 | 1/160s | f/5.6 | ISO 200 | 23mm
1 comments On Uma carta rica antes de morrer pobre
Saudade. Perdemos contato, mas continuo amando suas crônicas. Como você, atualizo uma carta “testamento” com atitudes práticas para facilitar a vida dos que ficarem com os boletos. Senhas de bancos, de redes sociais, o que tenho a receber, a pagar… Relatos de algumas mágoas e das tentativas diárias de perdão. Com seu relato, vou acrescentar que não quero velório. Bem lembrado. Bjssssss