Paulo Rebêlo | abril.2021
Tenho plena convicção que minha linha de crédito na vida se esgotou há bastante tempo. Às vezes acho que sigo neste mundo porque meu pai ainda não se foi. Depois que ele se for, ficarei sem fiador e a Morte virá me cobrar juros e correção monetária em poucas horas.
Vou chegar em casa e Ela vai estar sentada no meu sofá, de posse do meu controle remoto multifuncional, conversando com minha Alexa, tomando minha cerveja, comendo meu miojo, abrindo minhas latas de sardinha, jogando meu Playstation e tentando descobrir a senha da minha rede wifi_do_capeta_5g.
Vai ser um encontro tranquilo.
Eu vou querer conversar, mas Ela vai dizer que isso não está incluso no meu plano.
Vou oferecer o tabuleiro de xadrez, mas Ela vai rir e lembrar que Bergman e Max von Sydow também tentaram e não conseguiram.
Talvez o máximo que Ela me conceda seja um derradeiro episódio na Netflix. E de um seriado bem curtinho, desses de 20 minutos.
Xeques aleatórios –
Eu tinha vinte e poucos anos quando meu pai falou uma verdade que felizmente nunca vou vivenciar: não existe dor maior do que enterrar o próprio filho.
Não importa religião, crença ou ideologia. Enterrar o próprio filho contraria todas as leis naturais do universo. É uma dor irrecuperável e inesgotável.
Assustei-me com a confidência inesperada. É como se ele soubesse, por instinto, que já naquela época eu tivesse encontrado a Morte tão de perto e tantas vezes. Parei de anotar no meu caderninho o contexto dos encontros, pois já tinha perdido a conta.
Desde aquele dia, carrego comigo essa impressão troncha e sensação ridícula que, para protegê-lo da dor imensurável, o universo assinou um contrato com a Morte para esperar o tempo dele e ignorar o meu tempo.
Passaram-se duas décadas.
Reencontrei a Morte tantas outras vezes. A cada encontro, parece um aviso prévio que o tempo dele, e por tabela o meu tempo também, está mais próximo da linha de partida do que da linha de chegada.
E a cada ano que ainda consigo abraçar meus pais lúcidos e com um sorriso no rosto, sinto como se Ela estivesse me dizendo que o contrato será respeitado, mas a conta só cresce.
Não sei até quando. Planejamento não faz parte das aptidões profissionais da Morte. Ela apenas executa.
Eu respeito. Respeito demais. Desde criança. E reconheço integralmente minha dívida, fracionada nos caminhões que me jogaram para fora da estrada, na cadeira escolar que voou no meu parabrisa, no cano gelado dos revólveres que encostaram na minha testa, nos coquetéis molotov que caíram sob meus pés em protestos de neonazistas, nas balas de borracha que cegaram colegas ao lado de mim em manifestações, nas visitas inesperadas de capangas de prefeitos corruptos, no atropelamento na bicicleta, nas inúmeras doenças e comorbidades que eu já deveria ter tido e não tive; e agora nesta pandemia desgraçada que tem levado tanta gente que nunca deveria ser levada, enquanto muito injustamente eu passo incólume.
Em todos os encontros, senti os dedos dela se aproximando, querendo se entrelaçar em mim. Às vezes, por alguns segundos, Ela sussurrava dizendo que meu crédito na praça estava mais podre do que os títulos da dívida pública de Minas Gerais na moratória do Itamar Franco.
A cada desvio da foice, sempre volto a ter a mesma sensação estranha que não existe nenhum merecimento de absolutamente nada. E que durante algum lapso do nosso horizonte de eventos, o universo mostrou à Morte quantas pessoas meu pai ajudou na vida e ainda ajuda, quantas pessoas ele ensinou e ainda ensina, quanto conhecimento ele ainda tem para passar adiante, quantas alegrias ele permite e o quanto de gratidão tantas pessoas têm a ele.
E talvez apenas por isso Ela respeite o contrato.
Mas é claro que não é de graça.
Demorei a perceber, mas hoje sei que a cada encontro Ela levou um pedaço de mim como se fosse um seguro-caução.
Um pedaço da empatia com as pessoas, um pedaço da fé no ser humano, um pedaço da crença na bondade alheia, um pedaço da paciência com a ignorância, um pedaço da esperança por um futuro melhor para quem está na rua sem fiador.
E no lugar de cada pedaço extraído, Ela foi preenchendo com um respeito profundo pela efemeridade da vida e pelo sopro que é nossa existência.
E quando escrevo estas palavras, até parece poético, mas é uma maldição. Quase tão grande quanto minha memória de elefante também é uma maldição. Porque chega-se a um ponto que a gente respeita tanto a Morte que termina perdendo o respeito pela vida.
É uma aceitação inquestionável da fração de milésimos de segundos que separa a gente do último abraço. Basta piscar os olhos no momento errado e a gente se vai. Atravessar a rua um segundo antes ou segundo depois. Uma queda na oxigenação sanguínea. Um tropeço no meio da rua. Uma queda por causa da calçada desnivelada. A Morte não é banal, mas a banalidade mata qualquer um e a qualquer momento. Ela não avisa e não marca hora, mas é a única certeza absoluta que a vida tem.
Pelos nossos vários encontros, parei de reclamar quando o semáforo fica vermelho na hora que vou cruzar a avenida. Quando esqueço a chave e preciso voltar para casa. Quando me fazem esperar no trânsito. Quando cancelam reuniões. Quando absolutamente qualquer coisa não acontece e a gente acha que deveria acontecer, eu aceito de peito aberto e até meio feliz. Ela me mostrou que são esses segundos desviados que separam a gente do fim.
Já faz um ano desde nosso último encontro.
E logo eu, que me acostumei tanto a sentir os dedos Dela tocando minha testa e me senti em paz, que cheguei a sentir o cheiro da foice e abri os olhos para ver de perto, que ouvi os sussurros e me senti confortado, desta vez senti um abraço completo como nunca antes havia sentido e até agora tento processar mentalmente o que fez Ela soltar.
Acho que foi um jeito de mostrar que os juros da minha dívida extrapolaram todos os limites aceitáveis, que chegamos a um patamar mais inaceitável do que os juros bancários do Itaú.
Ou talvez Ela não esteja mais encontrando pedaços de mim para levar e resolveu mostrar que, apesar do meu crédito podre, eu estou mesmo é no lucro com tudo que já vi, aprendi e senti nestas décadas em que nós dois ignoramos as leis naturais da Física e passamos por cima de qualquer lógica da existência.
Enquanto não descubro, acho melhor mudar a senha da rede wifi para 12345 e colocar a Netflix no débito automático. Que ela se sinta em casa quando chegar e me espere para a última cerveja e o derradeiro episódio. Curtinho.
Sobre a foto em destaque:
Museu de Auschwitz, na Polônia.
Registro em 6 de abril de 2007.
Sony DSLR-A100 | 1/100 | f/9 | 45mm | ISO 100
1 comments On A Morte quer xeque-mate, mas eu só tenho cheques sem fundo
Paulo!
Bom te ler novamente!
Como estás profundo nessa crônica!
Teu somatório de viver tem muita chances! O subconsciente capta essa vontade e transforma em escudo!
E acho que é a Pandemia que faz a maioria dos “loucos por letrinhas”, ativar à escrita à exaustão!
Dos tantos revertérios dessa probabilidade funesta de dar de cara com a foice, brotou em mim
uma ânsia louca de viver, e viver o máximo, e com todo o gosto!
Estou adorando cada vez que abro os olhos e estou viva!
Estou sorvendo a vida, mastigando, lambendo essa possibilidade , que faço todo os protocolos (meio arreliada)
mas ajudando meu corpo de idosa, de sangue espanhol renitente, a desafiar na manha, essa bruxa e seu conivente COVID !
Vivamos!
Abrs
Tânia Lopes