Não cortem minha cabeça

Paulo Rebêlo | fev.2024 | Medium

Quando jovem, eu achava que todo mundo gostaria de ser imortal. Não importa bem o método, é mais uma questão filosófica: viver para sempre e nunca morrer?

Aparentemente, eu estava errado sobre os outros e sobre mim.

Sobre os outros, percebo hoje que a maioria das pessoas gostaria de viver um pouco mais, porém, não para sempre. Há argumentos simples, tipo a vida se tornar um tédio depois de tanto tempo. E há argumentos complexos, como a tristeza infinita que supostamente sofreríamos (e não conseguiríamos superar porque seria recorrente) ao ver tantas pessoas queridas indo embora, uma a uma.

Ou seja, no campo das hipóteses e no hipocampo da maioria, a imortalidade seria uma solidão perene.

Com o passar do tempo, tornou-se engraçado perceber como a solidão parece ser o maior medo de tanta gente. Para onde olho, encontro criaturas com medo de ficar sozinhas. Em todas as faixas etárias. Desde bem jovens, inclusive.

Sobre mim, também errei, e errei feio.

Porque achei que “no futuro” eu seria mais maduro e deixaria de sonhar com a esperança juvenil da imortalidade. Que aquilo tudo fosse apenas um sonho adolescente, uma ilusão filosófica de quem tem anseio excessivo por experiências e fome de conhecimentos.

Sempre imaginei que o passar dos anos fosse me trazer o conservadorismo biológico e a calma filosófica para deixar de pensar na imortalidade. Não trouxe. Acho até que piorou, porque agora, a cada ano, parece que Ela dá um passo maior em nossa direção.

Minha fome por experiências deveria arrefecer com o tempo, mas parece que só faz piorar. Quando me falam de tédio e de como a vida se tornaria chata, meu cérebro entra em parafuso e ativa uma incompreensão quase milenar. Penso imediatamente na quantidade de livros que gostaria de ler e ainda não li. A única tristeza que sinto é a certeza de que não vai dar tempo de ler sequer uma fração.

Quando ligo a televisão e vejo as décadas de filmes excelentes que ainda não vi, bate um desespero. Começo a fazer contas sobre quantos anos preciso para ver, ao menos, minha lista de favoritos no Netflix. Já até desisti de criar expectativas com Amazon e HBO.

Também parei de calcular aposentadoria, porque depois da reforma aprovada em 2019, ficou mais fácil eu morrer antes de me aposentar.

Livros e filmes, sozinhos, me ocupariam umas três vidas inteiras. Agora adicione a quantidade de lugares que ainda queremos conhecer. Inclua os lugares que já conhecemos, mas queremos voltar para conhecer melhor, passar mais tempo, absorver a cultura.

E as pessoas? Até eu, antissocial assumido, reconheço quantas pessoas incríveis e interessantes conheci até agora e o quanto ainda deve haver centenas (ok, talvez dezenas) que ainda não encontrei ou ainda não tive oportunidade de aprender com elas. Vou precisar de tempo, muito mais tempo, para achar uma pequena parte desses seres humanos perdidos entre os milhares de exemplos ruins que a gente esbarra todo santo dia.

Com a imortalidade, talvez a gente consiga até resolver nosso problema das finanças. Daqui a 100 anos, quiçá eu consiga parar de viver na pindaíba e devendo até as cuecas para o Banco do Brasil. Sim, porque uma hora vai sair o resultado certeiro da loteria. Depois de um século inteiro de tentativas, será?

Com séculos à frente, poderíamos aprender novas funções profissionais, sem o romantismo da juventude que nos colocou no caminho dos ofícios em extinção. Ou dos trabalhos que são pagos com “amor”. Porque, surpresa, amor não paga boletos.

Oxalá a gente consiga aprender, daqui a 200 anos, a operar na Bolsa de Valores e trabalhar de qualquer lugar do mundo, conhecer os países que não vai dar tempo de conhecer, tudo isso enquanto especulamos em cima da crueldade alheia e colhemos nossos dividendos na Bovespa.

É verdade que as pessoas ao nosso redor, as pessoas que amamos, vão embora e vamos ficar sem elas. Mas não tem sido assim desde sempre? A gente se apaixona, ama outras pessoas, mas também acordamos um dia e a paixão esfriou, o amor esvaeceu. E outras paixões surgem, outros amores florescem. Menos com os pais, é verdade. São biologicamente únicos e, talvez por isso, imortais de verdade. Mesmo quando se vão.

Bergman sem cabeça –

Meu fascínio pela imortalidade vem de cedo. Depois de assistir ao filme Highlander (1986), comecei a imaginar infantilmente quantas coisas a gente não poderia fazer, por nós e pelos outros, com o tempo infinito.

Até o início dos anos 1990, havia uma coleção bem famosa de livros, da linha TIME-LIFE, volumes enormes e fartamente ilustrados, uma espécie de enciclopédia resumida, que trazia um assunto específico em cada edição. Um dos primeiros, por coincidência, tratava sobre as experiências de quase-morte e tudo que a ciência sabia até então. Não deve ter sido um hobby muito sadio mentalmente.

A pá de cal veio anos depois, quando consegui assistir (com muito atraso) ao filme O Sétimo Selo (The Seventh Seal, 1957), obra prima do sueco Ingmar Bergman. A personificação da Morte e seu desafio metafísico no tabuleiro de xadrez, contra o cavaleiro de Max von Sydow, foi o suficiente para que o assunto ficasse carimbado no meu cérebro para todo o sempre.

Bergman morreu em 30 de julho de 2007. Max von Sydow morreu no dia 8 de março de 2020. Bengt Ekerot, o ator que fez o papel da Morte, morreu bem cedo: aos 51 anos, em 1971. Então, quando tive oportunidade de assistir ao filme pela primeira vez, a Morte já estava morta.

São duas concepções conflitantes. Na fantasia juvenil e oitentista de Highlander, o “grande prêmio” é a mortalidade. Toda a fundamentação do argumento gira em torno de que vai sobrar apenas um imortal no mundo que, finalmente, se tornará mortal e vai envelhecer igual a nós. Até então, o único jeito de morrer seria ter a cabeça cortada por outro imortal.

Desculpa, mas esse grande prêmio da mortalidade eu já tenho. E queria devolver ao portador, seja lá quem ele for.

Muita gente acha que é um sonho dos tolos. A maioria acredita ser cientificamente impossível, religiosamente reprovável, tecnicamente inviável e filosoficamente improvável.

Posso concordar com todos eles, mas se existe uma coisa que o amadurecimento sempre nos traz, infelizmente, é a extinção dos nossos sonhos juvenis. Eu ainda tenho, e quero manter, este sonho da busca do conhecimento e das experiências sem limites e sem a Espada de Dâmocles chamada doença. Excluir da equação a única certeza absoluta que o Universo nos entrega na hora que a gente nasce.

Tolice juvenil ou ilusão de tiozinho, espero que nunca cortem minha cabeça igual a Highlander. A gente nunca sabe de verdade. Vai quê?

Também tomei uma decisão recente: voltei a jogar xadrez. Ela já me visitou tantas vezes. Vai que uma hora dessas Ela me convida para jogar?


FOTOGRAFIA EM DESTAQUE:
Eros Bendato (The Head).
Cracóvia, Polônia.
Abril de 2007.
Sony a100.

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