Cansado de esperar o cansaço

Paulo Rebêlo | outubro 2021


Coloco três alarmes, mas a preocupação em não perder o voo me faz acordar ao primeiro toque. São 4h ou 5h da manhã, a hora em que costumo dormir, agora preciso acordar. Levanto da cama já vestido com a roupa de sair e pego a mochila ao lado da porta.

O voo decola para alguma capital e a única meta é chegar no início do horário comercial. Do aeroporto, pego o ônibus expresso, depois metrô ou táxi (hoje, Uber) até o centro: tem alguma questão para resolver ou alguém para conversar ao chegar.

Preciso achar a locadora de veículos, mas às vezes é mais prudente voltar até o aeroporto e alugar lá mesmo, por causa dos armários e de eventuais atrasos na volta. Então de novo é metrô, ônibus, táxi. Pego a chave, pergunto as coordenadas, pego o mapa e o guia rodoviário (hoje, Google Maps e Waze), traço a rota, compro uma coquinha, um pacote de batatinha, pego a estrada por 500, 600 km… não faz diferença, sempre chega tão rápido. Mesmo quando são dois dias de estrada.

Tenho que conversar com um sem número de pessoas que não quer falar, resolver alguma situação que não tem solução, investigar o que não deve ser descoberto, fotografar o que não deve ser registrado, perguntar o que ninguém quer responder. Ou simplesmente observar e coletar informação empírica (e nem sempre útil) de algum imbróglio judicial cujos detalhes desconheço, mas os advogados não querem perder tempo fazendo o percurso insólito e engolindo poeira se tem alguém apto (e barato) disponível. 

Acho uma pocilga para dormir, quando não durmo no carro mesmo, mas costumo ter sorte, sempre tem um espetinho por perto, com cerveja semi-gelada e um doguinho abandonado querendo tacos do meu bife acebolado. 

Depois ele segue o rumo dele, enquanto eu tento seguir o meu.

Às vezes encontro uma pizzaria, geralmente ruim, quase sempre ruim, mas pizza é pizza. 

Nem sempre tem doguinho abandonado, muitas vezes tem o doidinho abitolado; ele sente o cheiro de forasteiro e encosta junto do mesmo jeito. Quer contar a história do município e dos fantasmas que habitam a região.

Os doidinhos gostam de mim. E eu gosto de fantasmas. 

Outras vezes não tem doidinho e nem doguinho, mas tem os capangas do prefeito (ou do empresário rico da cidade) que sentam à mesa sem convite, mui amigos, para explicar como funciona a lei de verdade.

No dia seguinte, o universo aperta a tecla repeat e é a mesma coisa, às vezes são dois, três, quatro dias, pode ser em mais de uma cidade próxima, depois traço a rota de volta, compro outra coquinha, outro saco de batatinha, volto para entregar o carro, outras reuniões no centro, aeroporto, pão de queijo sem queijo, café superfaturado, gente correndo para todo lado.

Espero na sala de embarque, penso no embalo da rede em casa, em voltar a dormir às 5h da manhã para acordar somente na hora do almoço e ir comer aquela costela no bafo com meus amigos papudinhos, mas antes mesmo de entrar no avião chega uma mensagem, duas, três mensagens, vou ter apenas uma semana em casa e lá vamos nós rumo a novos registros e conflitos.

Enquanto houver estrada — 

Aos 20 anos, eu fazia tudo isso já com bastante desenvoltura e nem era exatamente novidade. Sem reclamar. Pelo contrário, fazia jus à juventude e tentava sugar cada segundo de conhecimento possível, de tudo e de todos, pois sabia que mais a frente o cansaço ia chegar.

Tinha certeza que aos 30 não ia ter mais saúde para continuar no mesmo ritmo, isto é, se não morresse antes durante esse vai-e-vem que nunca prende ou castiga ninguém. Todos sempre saem impunes.

Sabe deus como sobrevivi aos 30 e sabe o capeta como o cansaço não se apoderou de mim por completo, mas tinha certeza que faltava pouco, para mim era óbvio que aos 40 não haveria mais condições, mentais e físicas, de continuar nesse pique.  

Até teve bala, até teve faca, até teve caminhão desgovernado, mas casou o acaso de passar os 40 e parece que o cansaço perdeu o trem ou o GPS com minha localização.

Hoje tenho medo de chegar aos 50 cansado de esperar o cansaço. 

As reuniões continuam inúteis, os doguinhos continuam abandonados, o espetinho continua borrachudo, a pizza continua ruim e até os jagunços são os mesmos; pois agora são os filhos daqueles que há 25-30 anos sentavam ao meu lado com a faca na cintura.

Boa parte das mulheres que encontro pelo caminho também me parecem as mesmas, porque aos 20 anos elas esperavam o príncipe encantado, agora elas estão perto dos 50 e ainda esperam esse príncipe, porém não precisa mais ser encantado. Basta não sair para comprar cigarro.

Eu acho que o príncipe cansou.

Ou encontrou o cansaço, que deveria ser meu, e juntos foram para Acapulco viver felizes para sempre.

Se for esse o caso, então talvez eu também seja o mesmo; aqui esperando por quase três décadas essa idealização de estabilidade e segurança que vai me fazer ter amor à própria vida, abraçar a família, plantar uma árvore, adotar um cachorro, fazer um filho e pagar um seguro de vida.

Acho que estou mesmo é com inveja do cansaço. Porque as viagens ficaram mais longas e as pessoas ficaram mais distantes, mas minhas pernas aguentam andar mais quilômetros, meus ombros aguentam mochilas mais pesadas, preciso de menos horas de sono, a distância me agrada e as pessoas me fazem cada vez menos falta.

E os dias que demoravam a passar, bom, faz tempo que não percebo mais quando passam.

Sim, é verdade que meu fígado, meu esôfago e meus hormônios não mais se entendem tão bem quanto antigamente. Mas eu entendo — e trato — eles bem melhor hoje.

Espero que eles compreendam que o cansaço está feliz longe da gente. E que ainda tem muita coca-cola e batatinha na estrada esperando por nós.

Afinal, deve ser pra isso que inventaram o omeprazol de efeito rápido e o airfry.


FOTO EM DESTAQUE
Junho 2018
Nas proximidades de Petrolândia, PE.
Canon EOS 6D | 275mm | 1/400s | f/7.1 | ISO 100

2 Comments Cansado de esperar o cansaço

  1. Anna Anna

    Se uma mulher de 20 é = de 50 no que tange à espera pelo príncipe encantado está totalmente fora de consonância!!!! Alice o sonho acabou…! O mundo mudou Rebêlo e as pessoas também mudarm uma menina de 20 no mínimo deve estar se preocupando quais as danças devem aprender para dançar no tik Tok e uma de 50 onde vai passar as férias no final do ano com as amigas mais próximas com a principal preocupação, se terá ou não gatinhos de plantão. O que de fato é cansativo é você esperar que os outros pessoas ajam sempre da mesma forma!
    No mais ótima crônica sempre é uma alegria.

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