Paulo Rebêlo | junho 2022
O taxista parou no meio da avenida lotada, saiu do carro, abriu minha porta, falou trocentas palavras incompreensíveis em mandarim, colocou minha mala na rua, deu tchau e foi embora como se não houvesse amanhã. Para ser justo, entendi a única frase que ele falou em inglês, antes de zarpar:
— Welcome to Hong Kong!
Bom, pelo menos eu estava no país certo.
O endereço que eu tinha em mãos também batia com o local, mas não fazia o menor sentido. Não havia nenhum hotel ali. Apenas um formigueiro de gente e comerciantes que pareciam desafiar a Lei da Impenetrabilidade da Matéria, quando Isaac Newton cravou ainda no século XVII que dois corpos distintos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço e ao mesmo tempo.
Mas eu já tinha visto essa lei ser contrariada várias outras vezes na China e fiquei com pena de Niltão.
Um senhor sorridente vendia guarda-chuva ao pé do semáforo. Mostrei a tela do celular com o nome do hotel em mandarim (obrigado, deus Google) e ele acenou cordialmente em direção ao mesmo edifício, gigantesco na vertical e na horizontal, uma espécie de manifestação arquitetônica do apocalipse.
Ali dentro, em algum lugar, supostamente havia uma pousada e teoricamente uma reserva. O térreo do edifício parecia uma miniatura de Ciudad del Este, na tríplice fronteira com o Paraguai, com todo o comércio caótico e as pessoas gritando umas com as outras de um jeito que você não sabe se estão brigando, conversando ou pedindo desconto. De certo modo, também meio que parece o centro velho de Salvador na Bahia em horário comercial.
Em uma das paredes, havia um mapa gigante do edifício com coordenadas, números, nomes e indicações. Tive que esperar bons 30 minutos até chegar a minha vez de conseguir me aproximar para ler. Consegui decifrar aquele emaranhado semi-criptográfico e encontrei o elevador correto. Havia pelo menos 20 portas de elevadores diferentes. Agora bastava esperar outra fila para entrar no elevador. Mais 45 minutos em pé.
Meu quarto era exatamente como previsto, descrito e esperado: um cubículo de 6 metros quadrados.
Deve ter sido a primeira vez que senti orgulho de ser baixinho. O mais fascinante é como conseguem encaixar uma pia, um vaso sanitário e um mini-chuveiro dentro desse espaço. Depois de testar as facilidades sanitárias, levei mais 30 minutos para conseguir descer ao térreo e ganhar a rua.
Comprei minha coquinha zero. E comprei um pequeno guarda-chuva de tecido quadriculado, do mesmo senhor cordial e sorridente. Utensílio que guardei, trouxe comigo de volta para o Brasil e uso até hoje.
Ainda estava sem chip de internet, mas tinha uma noção geográfica que estava perto do rio e fui seguindo o fluxo mais lógico pelo horário e posicionamento do sol, agradecendo (pela milésima vez na vida) os sábios ensinamentos do Manual do Escoteiro Mirim que eu gostava de ler quando criança.
Quanto mais eu andava, mais eu me sentia em casa.
A cada beco, a cada viela, a cada carrocinha que passava, vinha uma sensação de familiaridade que senti poucas vezes na vida. É como se eu estivesse refazendo um caminho conhecido, sem nunca ter estado ali.
Quando enfim cheguei ao rio, na verdade estava no porto marítimo e lá estavam as balsas indo e voltando para o outro lado da ilha. A ficha caiu imediatamente, entendi onde estava realmente e compreendi finalmente porque tudo aquilo parecia tão familiar.
Eu não estava exatamente em Hong Kong. Eu estava em Kowloon.
Foi um pequeno sonho juvenil sendo realizado. E para entender o significado disso, só mesmo quem era (é) alucinado pelos filmes chineses. Sem querer, mas reconhecendo sem conhecer, ali estava a Baía de Kowloon e as balsas levando as pessoas para o outro lado da ilha, a Hong Kong Island, que apesar do nome é a principal ilha dentro do “país” Hong Kong.
Kowloon faz parte do imaginário coletivo de todo nerd que se preze e conhecer Kowloon City e a Península deve ser o sonho de 9 em cada 10 amantes do cinema asiático. O fascínio do cinema chinês por Kowloon tem várias nuances. Depois da Segunda Guerra, a região se tornou reduto de refugiados e rapidamente criou-se um ambiente propício a crime, gangstêrs e toda uma aura de mistérios sobrenaturais.
Também foi a partir de Kowloon que se popularizou pelo mundo o cenário das enormes favelas verticais chinesas.
Somente em 1993 que os muros que sitiavam Kowloon foram demolidos. Não à toa, era conhecida como A Cidade Murada (The Walled City) e às vezes como A Cidade da Escuridão.
Aqui no Ocidente, quem não era nerd de cinema asiático só teve oportunidade de entender o fascínio por Kowloon décadas depois, a partir de 1988 para ser mais exato, graças ao filme mais famoso de Jean-Claude Van Damme e que já passou oitocentas vezes na televisão: O Grande Dragão Branco (Bloodsport). Na época das filmagens, os muros que sitiavam Kowloon ainda existiam e o torneio ocorre justamente dentro da área murada da cidade, há todo um contexto de obscuridade.
Ainda hoje, 2022, o fascínio pela Cidade Murada segue firme. Alguns dos principais nomes do cinema chinês tiraram da gaveta um projeto de mais de 20 anos e em breve deve estrear “Kowloon, The Walled City”. Por sinal, é o mesmo nome de um documentário de 1988 sobre a cidade, dirigido pelo austríaco Hugo Portisch e narrado pelo Otto Clemens. Raridade!
Alguns jogos de videogame, nos anos 80 e 90, também mostravam essa Kowloon sem lei e sem regras, embora às vezes usassem outro nome para não ferir os brios chineses ou gerar insatisfações diplomáticas. Também é impossível assistir a filmes gravados em Hong Kong sem ver as balsas atravessando a ilha pela Baía de Kowloon e vários barquinhos pequenos de pesca no meio de grandes embarcações.
E agora eu estava dentro de um desses barquinhos de pesca. Exatamente igual e no exato mesmo local onde Bruce Lee filmou em 1973 o trecho inicial do seu último filme antes de morrer — Operação Dragão (Enter the Dragon) — e que se transformou na mais clássica representação urbana de uma Hong Kong que não existe mais.
Passei uma semana andando em Kowloon e mais parecia que eu estava andando no bairro da Boa Vista, no Recife; ou passeando pelas lojas do Conic, em Brasília; ou descendo a Rua Augusta, em São Paulo, em busca da próxima cerveja quente com coxinha fria.
Sim, evidentemente me entupi de noodles em Kowloon. E espetinhos diferentes nas carrocinhas de rua. Sobrevivi mais essa para poder escrever, com vários anos de atraso, antes que eventuais lapsos de memória levem embora meus pequenos sonhos realizados.
Agora só falta organizar as fotos, que há 25 anos eu digo que farei um dia e esse dia nunca chega.
FOTO EM DESTAQUE
Novembro de 2018.
Baía de Kowloon, Hong Kong.
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