O ódio ao PT parece a síndrome do macho traído

Paulo Rebêlo
Sententia
maio.2022


Acho que tem duas maneiras de entender o ódio ao PT e a Lula.

A primeira é mais fácil e bem objetiva, embora exija algumas horas de dedicação. Basta você ler dois livros seminais de Jessé de Souza: A Elite do Atraso (2017) e A Classe Média no Espelho (2018). Nenhum livro com essa proposta e dessa magnitude está imune às críticas, inclusive dos próprios pares na Sociologia. Jessé é contundente e tem precisão quase cirúrgica nos pontos nevrálgicos do nosso subdesenvolvimento social.

A segunda não tem o respaldo científico da sociologia, mas tem psicologia: para a maioria das pessoas, a traição é imperdoável.

Mesmo quando elas também traem.

O ódio da traição tem muitas nuances e nem sempre é cego. Às vezes é apenas ignorante, outras vezes é ingênuo. E muitas vezes não passa de uma síndrome do macho traído. 

Talvez pelo machismo enraizado em todos nós, homens e mulheres, o maior problema da traição não é o ato de trair; é o conhecimento público. Quando o resto do mundo sabe que você foi traído, não dá mais para ignorar. Perdoar fica parecendo (aos olhos dos outros) um sinal de fraqueza.

Até as pedras souberam que o PT traiu descaradamente e, mesmo assim, o partido se comporta como uma Pollyana moça e não admite, ou não aceita, sua própria condição humana de também ter quadros moralmente decaídos e politicamente corruptos. 

Exatamente igual a 100% dos partidos políticos.

O problema é que o Brasil sempre teve um relacionamento aberto com a corrupção. Os outros sempre traíram, mas a gente sempre soube. E aprendemos a conviver na ilusão de dias melhores. É por isso que a traição do PT continua não sendo aceita por milhares de ex-eleitores do partido e outros tantos que simpatizavam em cima do muro. 

É a traição de um amor alimentado desde 1989, a traição da esperança de um relacionamento saudável e duradouro que deveria ter começado em 2003, quando Lula assume a presidência depois de 13 anos prometendo ser o que os outros não eram e fazer o que os outros não faziam.

Nenhum outro partido lutou e verbalizou com tanta coragem e tanta assertividade contra a corrupção e o fisiologismo. Nenhum outro partido foi capaz de promover campanhas tão emocionantes, agregar personalidades e culturas tão diferentes com um objetivo em comum, alimentar de verdade o povo com comida e a alma com esperança.

Foram 13 anos (1989-2002) de cortejo e juras de amor. Para o eleitor descobrir a traição logo nos primeiros anos de relacionamento, com as denúncias do famigerado mensalão em junho de 2005. 

Oras, a cobertura de um escândalo similar, para aprovar a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), foi mais rica em detalhes, documentos e depoimentos. Só não tinha Whatsapp naquela época. O próprio Fernando Henrique respondeu que a compra de votos era uma “questão menor da política“. Pragmaticamente correto.

Ocorre que FHC não era, nunca foi e nunca tentou ser Lula. Muito pelo contrário. FHC passou a vida sendo um sociólogo inteligentíssimo e com notáveis valores de esquerda, por mais que seu eleitorado não goste de admitir. Ao ser eleito, porém, pediu para gente esquecer tudo que ele escreveu. Acharam que era piada. Não era. E os oito anos de FHC foram o oposto do que ele pregou a vida inteira. Fora da presidência, FHC escreveu livros e promoveu inúmeras palestras para contar ter se arrependido de várias decisões, apoios, costuras e conjunturas. Tarde demais.

O PT nunca nos vendeu choque de realidade. Vendeu sonhos para, em seguida, nos tirar a oportunidade de sonhar. Lula foi (ou deveria ser) o primeiro ser humano de verdade a chegar ao poder. Gente feito a gente, sabe? 

Porque nenhum outro partido prometeu fidelidade ao sonho de um país melhor.

Tem partido de esquerda que promete a instauração do socialismo e acha que as pessoas levam a sério, quando nem eles se levam a sério. Tem partido que se diz comunista, sem fazer a menor ideia do que é o comunismo. Tem até partido de direita que usa o termo ‘socialista‘ no nome.

O PT, apesar dos regulares rompantes de ignorância de alguns de seus dirigentes, simplesmente nos prometeu o mesmo país, o mesmo Brasil, mais justo e menos corrupto, com divisão de renda e economia solidária.

A gente não era Pollyana-moça, mas a gente se permitiu sonhar. Sabíamos que os ricos iam ficar mais ricos, é assim no mundo todo e desde sempre. Só não queríamos saber das traições e ver os larápios pisando na gente como sempre pisaram durante cinco séculos. Não era pedir muito. 

Com o PT, o povo deixou de ter fome e começou a ter educação, até então uma regalia reservada às elites do atraso. Com livros e professores, seguimos Chico Science da Lama ao Caos: ‘com a barriga vazia não consigo dormir, com o bucho mais cheio comecei a pensar‘.

E pensamos: estão nos roubando de novo e não conseguem nem esconder? A gente deixa roubar, só não queremos ver o que já vimos nos últimos 500 anos, por favor.

Sabemos que Lula conhece a fome de perto. Conhece os significados de realidades nefastas como a indústria da seca, a exploração do nosso subdesenvolvimento social e o coronelismo político. Depois de 13 anos tentando, foi eleito e entregamos a chave da nossa casa e do nosso coração.

O ódio ao PT e a Lula e o sonho de um Brasil melhor - Paulo Rebêlo

Retrato comum do dia a dia na periferia no Brasil. Caminhada de campanha no Recife (PE), agosto 2012. Foto: Paulo Rebêlo

Muitos acreditam que a traição foi escancarada ainda antes da vitória, durante aquele fatídico vinho Romanée-Conti de 6 mil reais (preço de 2002). Podia ter bebido, sabe? Várias garrafas. Se eu fosse rico feito o Duda Mendonça, teria dado de presente a Lula não apenas uma garrafa, mas uma caixa inteira. Pensando bem, eu teria dado meu cartão de crédito com a senha liberada para Lula e ainda diria: gaste tudo, meu filho. Esbanja. Enfia o pé na jaca. Você merece. Você já deu mais esperança para o Brasil do que todos os outros políticos reunidos. Leva que é tudo seu! E se puder, me leva também.

Mas não precisava tirar foto, sabe? Não precisava transformar em evento e alardear aos quatro ventos. Enquanto o povo naquele mesmo instante, apaixonado e cego de amor, ainda passava fome. A gente não precisava saber, continuaríamos felizes e apaixonados. Por falar em felicidade, sabe quem gostava muito de beber Romanée-Conti? O Paulo Maluf. E adorava que todos soubessem.

O vinho foi ignorado por muitos, jogaram a culpa da algazarra no Duda Mendonça. Começou a ficar difícil de ignorar quando surgiram os nomes de quem faria parte dos ministérios e os cargos de alto escalão. E os tesoureiros, então…? Pareciam todos importados do que havia de pior em todos os outros partidos políticos.

Mas o PT não era os outros. Parecia a nossa própria mãe, quando dizia: menino, você não é os outros.

Parecia também que tínhamos anticorpos contra a “mosca azul”, mas foi outra ilusão gerada pela cegueira da paixão. De um jeito bastante educado, talvez educado até demais, a mosca azul é descrita majestosamente por Frei Betto no livro de mesmo nome. Ele só aguentou dois anos. Tinha o cargo de Assessor Especial do Presidente da República e coordenador da Mobilização Social do programa Fome Zero, posteriormente transformado no Bolsa Família. Leitura obrigatória, aliás.

Em nome de uma idolatrada e superfaturada governabilidade, também fomos traídos por elogios públicos e abraços efusivos com representantes seculares da fome, da indústria da seca, do corporativismo da maldade. Sarney, Renan, Maluf, Valdemar, o que foi aquilo?

Pode abraçar, viu? Pode até beijar. Só não precisava dormir junto, sabe? Se tiver que dormir para governar nosso sonho, pelo menos não diga para todo mundo depois. Seja um cavalheiro.

Não foi.

Quem já odiava o PT, pelos motivos sociologicamente explícitos e descritos nos livros de Jessé de Souza, só passou a odiar ainda mais. E quem não odiava, começou a ir para cima do muro. A cegueira da paixão começou a se transformar na cegueira da descrença e, para quem não aguenta ouvir de política e acha que a política só tem coisa ruim, ficou muito fácil chegar ao ódio. 

Obviamente irônico e psicologicamente óbvio é perceber como grande parte do ódio ao PT foi e continua sendo alimentado por ex-eleitores e ex-aliados do partido. Além de outros partidos pulverizados da esquerda e da pseudo-esquerda. Oi, Ciro Gomes, tudo bem? Oi, Marina Silva, como vai você? Olha, tem muita gente para dividir a conta. E quem devia estar à frente da cobrança era o Fernando Haddad, que não perdeu a eleição para Jair Bolsonaro; perdeu a eleição para o ego sempre inflado e igualmente cego de uma esquerda que historicamente não consegue sonhar junto. Mas faz um pesadelo coletivo como ninguém. 

É preciso ter muita paz de espírito para não se sentir o macho traído da síndrome.

É tudo passado. Estamos em 2022. A traição parece distante e, mais importante, parece muito pequena diante do que se configura à frente. 

Quis o destino que o atual presidente Jair Bolsonaro tenha se transformado, para muitos ex-eleitores e machos traídos, no maior cabo eleitoral de Lula. Com seus atos suicidas, comportamentos macabros, maldades e ignorâncias generalizadas, sendo apenas a pessoa que ele é, Bolsonaro é o maior benfeitor da campanha do PT.

São pessoas que estão fechando os olhos às traições do passado, mesmo cientes das traições que nos aguardam no futuro. De pessoas que entendem e vivem muito de perto as realidades sociais, de pessoas que encontram virtude no bem maior, na coletividade um pouco mais fraterna, na divisão um pouco mais justa.

Pessoas que viveram e sentiram o desenvolvimento socioeconômico como nunca antes. De gente que comeu carne pela primeira vez. De famílias inteiras que viram o primeiro filho se formar numa faculdade, depois de cinco séculos de elitismo educacional programático. 

É claro que uma grande parcela do Brasil não viu isso, é muito difícil enxergar o próprio entorno quando você está inserido no mesmo. Diferentemente de uma mosca (azul ou não), a gente não tem visão periférica. Não faz parte da nossa programação neural. 

Muita gente traída vai votar novamente em Lula. Minha dúvida é se ele tem realmente consciência de que não é um voto de perdão. É um voto de não-omissão. 

Geraldo Alckmin e o ódio ao PT e a Lula - Paulo Rebêlo

Geraldo Alckmin e José Serra, durante uma caminhada de campanha em Bauru, interior paulista, em agosto de 2010. Foto: Paulo Rebêlo.

É um voto sem sonhos, para um novo casamento que agora posiciona Geraldo Alckmin como a noiva cortejada, a virgem reluzente da Opus Dei, o ícone da elite do atraso. 

Quem também venceu a síndrome do macho traído foi o Aloysio Nunes Ferreira. Ex-ministro de FHC, ex-ministro de Michel Temer, vem a público declarar voto em Lula no primeiro turno. Não sei o que ele pensa realmente, mas desconfio que temos um pensamento em comum: não faz o menor sentido falar em traição quando se está dentro de uma suruba.

Talvez não tenha perdão, mas também não vai ter omissão.

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