A timidez me salvou do Quirguistão

Paulo Rebêlo | agosto 2021


A esposa de Satã não queria tomar café, queria tomar cerveja. Eu sabia disso, estava escrito na testa dela, mas acima daquela testa maravilhosa de pele de veludo também tinha uma placa imaginária e luminosa em neon violeta me dizendo: é cilada, bino.

De todas as pessoas no mundo que poderiam levá-la para tomar uma cerveja, eu só estaria na fila se fosse para perder meu rim para o tráfico soviético de órgãos e acordar de ressaca numa banheira cheia de gelo sem uísque e sem poder ligar para o Samu — porque eles não falavam inglês.

Foi no café cordial que descobri: a anticristo não era da Rússia, mas do Quirguistão, um dos países que formavam a União Soviética. Eu nunca tinha sequer ouvido falar.

A prova maior de que ela era uma missionária do capeta e o braço direito do anhangá-tinhoso veio quando ela me perguntou, meio na lata, por que eu nunca a tinha chamado para tomar uma cerveja, nenhuma vez, nos seis meses que estávamos nos esbarrando.

Eu ri por dentro e gelei por fora, senti meu fígado e meus rins já quase saindo do meu corpo com um bisturi podre improvisado na prisão com cabo de aço enferrujado.

Nesse ponto, entreguei minha vida a Jesus e respondi:

Se olhe no espelho. Tem 200 pessoas (homens e mulheres!) olhando para você freneticamente e lhe fazendo mil convites, eu não ia ser o macho sem noção que todas as mulheres reclamam o tempo inteiro e com toda razão.

Por alguma razão, ela discordou. E por outra razão, eu concordei que a timidez tem o poder de transformar homens em adolescentes.

Na sexta-feira seguinte, a psicopata passou de novo pelo corredor da biblioteca já perto das 22h. Veja bem, meu bem, só gente sem vida e gente serial killer fica em biblioteca numa sexta-feira de noite. Mas lá estava ela, mais linda do que nunca, lendo aqueles livros do alfabeto estranho, provavelmente planejando o próximo esquartejamento de gordinhos para abate.

Sobrevivi seis meses sem ser capturado pela emissária de Belzebu. Com meus rápidos reflexos, consegui desviar de um sorriso aqui, outro aculá, um gesto ali e um tchauzinho alá, uma perguntinha marota ou curiosidade da garota.

Até que ela conseguiu o que até hoje nunca consegui: ela venceu a timidez.

A fofolete do cão se aproximou com o telefone em mãos, pediu para eu ligar para os chineses do pôquer e disse que hoje só voltava para casa depois de aprender a jogar.

Chegamos naquele bar de subsolo cujo dono, um ex-presidiário russo, nos emprestava umas fichas maravilhosas, pesadas, de osso, coisa fina, nunca tinha visto antes. Inocentemente eu gostava de pensar que não eram ossos humanos, mas a timidez nunca me deixou perguntar.

O russo gostava de deixar, em cima da mesa, duas pistolas Glock 9mm para “proteger” os clientes que bebem demais e “esquecem” de pagar a conta do uísque e do absinto ucraniano que ele importava, certamente pagando todos os impostos e tributos.

Não sei se a esposa de Satã falou em russo ou aramaico com ele, mas notei que nessa hora até os chineses (pela primeira vez) ficaram com medo de alguma coisa e vieram me perguntar whatta fuck is this. Pensamos em sair correndo, mas aí um deles lembrou das pistolas e desistimos.

A esposa do demo botou uma garrafa de JB na mesa e nessa noite o uísque foi de graça e pela primeira vez, em mais de um ano frequentando esse bar, apareceu alguma coisa para petiscar durante o jogo. A gente virava a noite ali só no osso. Literalmente. Nem amendoim tinha.

Enquanto os chineses tentavam ensinar a Devil’s Wife a jogar pôquer, me abracei com JB, meu cachorro engarrafado, comecei a somar quantas vezes na vida essa mesma situação não se repetiu, em tantas cidades, em tantos países, na eterna dúvida se a timidez me afasta de pessoas interessantes ou me protege de psicopatas esquartejadoras, porém lindas.

Quando enfim o sol começou a raiar, apontando a hora de o bar fechar, fomos embora, nunca tinha visto aqueles chineses tão felizes, mas foi a criatura do mal que me abraçou e agradeceu pela noite mais feliz da vida dela até então. Somente depois fui descobrir que 90% da população do Quirguistão é muçulmana sunita.

O semestre (dela) acabou dois dias depois dali e ela pegou o avião de volta ao inferno, quer dizer, ao Quirguistão.

Naquelas últimas 48h, a esposa de Satã se lamentou várias vezes por não ter vencido a timidez antes. Questionou quantos lugares e conhecimentos ela poderia ter conhecido se tivesse tido coragem, mais cedo, de se aproximar para um café e uma cerveja.

O mais obviamente bizarro é que, para mim, o culpado era eu. Por não ter feito exatamente a mesma coisa.

Tive certeza na época, tenho certeza hoje, se aqueles últimos dois dias tivessem se estendido, nem Jesus em carne e osso de ficha teria tido forças de me tirar do avião.

A timidez me salvou de virar muçulmano no Quirguistão e eu talvez tenha salvo o mundo de ver nascer um novo bebê de Rosemary.


Foto em destaque:
Agosto 2019.
Balneário Camboriú
Santa Catarina, Brasil.
Fujifilm X-100f | 1/500 sec | f/8.0 | ISO 200

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