Paulo Rebêlo | julho 2021
Nunca fui rato de biblioteca, inclusive acho que passei todos os anos da faculdade sem colocar os pés dentro de uma; mas houve um tempo em que a biblioteca se tornou meu refúgio quase diário.
Porque era o único lugar da cidade onde eu conseguia café de graça, poltronas incríveis, aquecimento de verdade, silêncio, tranquilidade, jornais gringos e internet rápida.
Aliás, os sofás eram mais confortáveis do que qualquer cama de hotel cinco estrelas. Eles me abraçavam e não queriam me soltar. Só faltava fazer uma cosquinha na barriga, já que na época eu ainda não tinha careca para coçar.
Eu queria morar lá, de verdade, mas já ficaria muito feliz se pudesse amanhecer o dia uma ou duas vezes por semana. Principalmente depois das noites de pôquer com os chineses. Eles eram muquiranas e nunca queriam rachar o táxi na volta, então a gente andava vários quilômetros debaixo de neve para chegar em casa e encontrar o aquecimento desligado, pelo síndico, para economizar o gás do edifício.
Como eu estava na biblioteca para tudo, menos para os livros, ainda tinha a vantagem de poder ver várias nerds lindinhas de óculos gigantes, semblantes preocupados e sotaques charmosos. No quadro de avisos, muita gente procurava e ofertava aulas particulares. Infelizmente nunca quiseram aprender português.
Pontualmente às 22h00, os seguranças da universidade faziam a ronda e me achavam, geralmente cochilando numa das cadeiras do vovô com uma xícara emborcada por cima do bucho. Quando começaram a me chamar pelo nome, fiquei em dúvida se eu estava dormindo demais.
Foi nessa biblioteca que me apresentaram o Facebook pela primeira vez, pouco tempo depois que Mark Zuckerberg abriu a rede social para os reles mortais fora das universidades americanas.
Também foi nessa biblioteca que surgiu aquele vulcão ruivo de bochechas rosadas e olhos de um lince cansado.
Ela conseguiu o impossível: ser mais bonita do que a ucraniana que me levou para fazer uma aula de ioga. Agora meus pensamentos se dividiam entre planejar fugir dos seguranças para dormir na biblioteca e adivinhar de onde era aquela criatura, pois ela nunca aparecia nos zilhões de eventos sociais que a faculdade organizava.
Quanto mais eu a via, mais eu tinha pena. Não porque ela sempre se enfurnava nos livros, por horas e horas a fio, mas porque a beleza daquela jovem manceba era tão estonteante e estratosférica que certamente a vida dela era um inferno.
Veja bem, meu bem, não sou eu que estou dizendo. São todas as mulheres que conheço. São décadas de aprendizado: especificamente sobre a quantidade de abobrinha que precisam ouvir diariamente dos homens, as cantadas sem graça, as piadinhas, os duzentos convites desprezíveis, as canalhices e cafajestices.
É uma inutilidade verborrágica infinita e uma miudeza cognitiva masculina sem fim. A ponto de me fazer ter raiva do bicho-homem, mas pelo menos ajuda a colocar este gordinho aqui no seu devido lugar: distante e de boca fechada.
Agora eu olhava para aquela criatura e tinha certeza de que era o inferno multiplicado por mil.
Rupinol do cão –
Durante vários meses a gente se esbarrou regularmente. A diferença é que ela pegava os livros e ficava lendo de verdade, o tempo todo e todo dia, enquanto muitas vezes eu estava na biblioteca apenas para cochilar. E tomar café de graça. E pensar na morte da bezerra. E ser abraçado pelo sofá quentinho enquanto lá fora o cuspe virava gelo a 20 graus negativos.
Um dia, caí no sono (pra variar) enquanto refletia sobre como a vida das pessoas feias é tão mais simples, mais livre e mais tranquila. A gente escuta menos imbecilidade do sexo oposto e não cria expectativas com nada. Aproveitamos o que a vida nos entrega e ainda agradecemos.
Naquele mesmo dia, absorto nessa minha profunda filosofia social, os seguranças esqueceram de mim. Passava das 22h00 e não vieram me buscar. Também não gritaram meu nome lá do portão.
Fiquei feliz, finalmente conseguiria dormir de verdade na biblioteca. Para ficar perfeito, só faltava terem esquecido de guardar a máquina de café no armário, mas aí era eu sonhando alto demais.
Voltei a cochilar, pois sabia que o atraso dos seguranças seria justificado em breve e logo chegariam com a vassoura.
Senti apenas a poltrona balançando. Quando abri os olhos, ela estava na minha frente segurando dois copos grandes de café, desses de viagem.
Era naturalmente linda, mas aqueles cabelos de fogo e aquela pele de veludo a colocavam num patamar tão surreal que minha única conclusão científica é que eu estava frente a frente com a esposa de Satã.
E ela estava ali com o último café da minha vida, pronta para levar minha alma penhorada ao anhangá-tinhoso.
A outra possibilidade também óbvia: ela era uma psicopata soviética que subornou os guardas da biblioteca. Colocou um boa-noite-cinderela naquele copo de café e no dia seguinte eu acordaria numa banheira infecta, no subsolo de uma estação de trem abandonada, sem meus rins e sem meu fígado.
Aceitei o café, levantei da cadeira morrendo de medo e calculando quantos minutos eu ainda tinha antes de o rupinol começar a fazer efeito. Inocente, eu, pois provavelmente era rupinol russo, muito mais eficaz.
Precisei de muitos anos para processar o que aconteceu depois dali e até hoje não sei se fui salvo ou se fui amaldiçoado pela minha infinita incapacidade de compreensão feminina.
Preciso de uma próxima crônica para detalhar como foi tomar café com a esposa de Satã, mas antecipo que meu único consolo era o prejuízo enorme que o consórcio de Belzebu teria quando fossem vender meu fígado no contrabando.
Foto em destaque:
A esposa de Satã à paisana e sem os cabelos de fogo.
Budapeste, Hungria, 2007.
Sony DSC-T7 | ISO 80 | f/3.5 | 1/40s | 6.33mm