Memórias alfas de uma guerreira

Paulo Rebêlo | nov 2022


Esse quase autorretrato, de 7 de abril de 2007, sempre me serve como prova documental de que um dia eu já tive cabelo. Provavelmente é a única selfie nos meus arquivos, de uma época quando esse termo ainda não existia. 

Capilaridades à parte, é uma das imagens que guardo com muito carinho, mas por motivos pouco aparentes: porque eu detesto aparecer em fotografia. São detalhes que só fazem sentido para mim. Seria um egoísmo fotográfico?

A foto surgiu sem querer. Com pressa, eu queria apenas registrar a ironia na mensagem we don’t serve drunk people. Era a porta de um bar! E na Cracóvia. Onde muitas vezes o álcool serve como termostato e se transforma em questão de sobrevivência. Pensando bem, quando não é?

Achei curioso, fiz o registro rápido e somente vários dias depois fui descarregar o cartão de memória. Foi quando vi a imagem por inteiro. Não teve nenhuma técnica, experiência, olhar treinado, PN. Apenas sorte e acaso.

Agora, quinze anos depois, resolvi finalmente organizar e catalogar 25 anos de arquivos de fotos e esbarrei com a imagem de novo. É a única foto por onde consigo ver um pouco a minha antiga câmera Sony Alpha-100 em ação.

Foi com ela que aprendi a gostar, fazer e editar imagens em preto e branco de alto contraste. O contraste talvez seja porque me lembre as fotografias de filme 35mm e do laboratório caseiro que eu passei anos prometendo montar, e nunca montei, para revelar minhas próprias fotografias em casa. 

Aquela Sony a100 é muito querida na minha memória. Além de ter sido minha primeira câmera digital de verdade, também foi o equipamento que marcou minha transição completa do analógico (filmes 35mm) para digital.

Só que a100 também era uma transição para a própria Sony. Nenhum fotógrafo usava e ninguém no mercado levava a sério. Então, por que eu apostei na Sony? Porque eu não era fotógrafo. Mas entendia um pouco de tecnologia. 

Esse modelo alpha-100 (a100) foi a primeira câmera de lentes intercambiáveis (DSL-R, de Digital Single Lens Reflex) que a Sony colocou no mercado. E o que ela investiu nessa transição, para uma câmera “de entrada”, era tecnicamente superior aos modelos que a concorrência oferecia no mesmo patamar, porém a um preço mais atrativo. 

Foi uma transição mútua e me pareceu curiosamente engraçado.

Foi meio troncha, porém muito saudável, a entrada da Sony na indústria de fotografia profissional, depois de ter adquirido a Konica Minolta — marca que pouca gente ainda lembra, apesar das milhões de câmeras Minolta que fizeram história durante quase 80 anos.

Em 1985, a Minolta estava no auge ao lançar a primeira câmera profissional com foco automático embutido no corpo da câmera. Parece besteira, mas na época era o suprassumo da tecnologia. Era a Minolta Maxxum 7000, que eu nunca nem vi na vida, naquele Brasil varonil dos anos 80 onde tudo de tecnologia a gente só podia conhecer em revistas estrangeiras e livros importados. 

No Brasil, a Maxxum ficou conhecida como Dynax, porque era o nome usado na Europa. E veja só, não por coincidência, no Japão se chamava Alpha.

A exemplo da Kodak e de outras marcas famosas, a Minolta não conseguiu fazer uma transição saudável do analógico para o digital nos anos 1990-2000. Em 2003, já em crise avançada, juntou-se à Konica e daí virou Konica-Minolta. Três anos depois, em 2006, foi adquirida pela Sony e encerrou 78 anos de história. 

Então, a Alpha-100 foi a primeira câmera DSL-R com o nome da Sony, mas por dentro era quase toda uma Minolta Maxxum/Dynax, porém sem uso de filme 35mm e, no lugar, um sensor CCD e os devidos componentes eletrônicos. Foi lançada em julho de 2006 no mundo inteiro.

Tem outro detalhe incrível, que infelizmente eu só descobri quando já tinha vendido minha Sony a100: o padrão de montagem de lente, adotado pela Sony, foi herdado da Minolta sem nenhuma modificação. Não mexeram em nenhum pitoco. Então todas as lentes antigas da Minolta podiam ser encaixadas e usadas normalmente na Sony a100, só que quase ninguém sabia disso na época.

A Sony sabia que não podia competir com Nikon e Canon, as duas marcas hegemônicas (ainda hoje, inclusive) na fotografia digital. O consumidor leigo e o fotógrafo mediano eram o foco. Tecnicamente, a Sony a100 não era uma câmera profissional, longe disso. O termo usado na época era semi-profissional. Esse termo ainda se usa hoje, embora não faça muito sentido diante dos avanços da tecnologia nos sensores de 90% das câmeras com lente intercambiável. 

No papel, a lente também tinha especificações pobres, quase amadoras. Era uma 18-70mm f/3.5-f/5.6 e custava apenas 100 dólares — o preço, aliás, era outro motivo para o mercado não levar a sério. A Sony a100 custava 900 dólares só o corpo da câmera; ao acrescentar a lente do kit de entrada, subia para apenas 1000 dólares e era uma pechincha mesmo que fosse uma lente ruim e safada; mas era uma lente fantástica, de fabricação e montagem herdada da Minolta.

Demorou muito para o resto da indústria perceber a relíquia que estava sendo vendida por 100 dólares. E apesar de ser uma lente escura, e que não segurava a abertura do diafragma em todo o alcance óptico, essa lente Minolta rebatizada de Sony produzia imagens extraordinárias e que não condiziam com a baixa potência de um sensor com módicos 10.2 megapixels da Sony a100.

A Sony a100 ainda tinha uma grande limitação de ISO, só ia até 1600 e, claro, qualquer foto com ISO 1600 parecia uma peneira de tão granulada. Mas se você manjasse um pouquinho, graças à qualidade da lente, dava para fazer uns milagres até mesmo com o ISO estourado a 1600.

A baixa potência do sensor também limitava demais o detalhamento das imagens, cropar uma foto era suicídio em termos de definição, e o zoom no arquivo era sempre uma tristeza. Mas a imagem final, o resultado final que saía direto da câmera, me dava um nó na cabeça. As imagens eram muito boas de olho e de edição.

Fotografei durante três anos com essa danada.

Em meados de 2009, fiz um escambo com um grande amigo, Assis, que não à toa tinha sido meu professor de fotografia no passado, adicionei mais uns caraminguás e voltei para a safadeza da Nikon. Oras, se a Sony a100 era tão boa e tornou-se tão querida por mim, a lente era incrível e fazia milagres, minhas imagens em preto e branco eram do jeito exato que eu gostava e queria, por que cargas d’água eu voltei para Nikon? 

Explico isso em outro texto. Por enquanto, vou me ater às últimas memórias alfa da alpha-100.

No meu coração, não fazia o menor sentido migrar do analógico para digital justamente com a Sony. Primeiro, porque se a aventura da Sony flopasse e não desse certo, a alpha-100 ia virar um elefante branco e não ia conseguir vender. Segundo, porque eu já tinha muita familiaridade com a Nikon, desde os modelos de filme 35mm.  

Mas a oferta de tecnologia + preço + acaso foi milimétrica. 

Em julho de 2006, eu estava de malas prontas rumo a Budapeste, onde passaria a morar por causa de um mestrado. Tinha me desfeito do equipamento analógico e ia tentar migrar de vez para o digital, sem depender daquelas câmeras portáteis de passeio. Só que, antes de chegar na Hungria, passei um tempo em Portugal. 

Foi naquele julho de 2006 quando a Sony lançou a bendita a100 na Europa e na América do Norte ao mesmo tempo. Em agosto, entrei na FNAC do Chiado, em Lisboa, para comprar um pendrive… e lá estava ela, meio escondida na vitrine e isolada das outras, a Sony a100 com a bendita lente de 100 dólares.

Eu conhecia bem os modelos digitais da Nikon. Achava as semi-profissionais tecnicamente ruins, aliás, acho até hoje. A Nikon começa a ter excelentes câmeras a partir dos modelos profissionais, porém, o valor era inviável para mim, ainda mais não sendo fotógrafo de verdade. Parecia um investimento sem sentido.

Também havia modelos da Canon, ainda mais caros e mais difíceis de encontrar. Lembro que, naquela época, o Estadão tinha feito um contrato de exclusividade com a Canon e a equipe de fotografia do jornal só usava Canon. Toda vez que eu esbarrava com algum deles nas pautas em São Paulo, ficava paquerando as câmeras e aquelas lentes brancas lindas e bacanudas. 

Refletindo agora, espero que nenhum deles tenha me interpretado errado…

De volta à FNAC em Lisboa, o que ocorreu foi mais ou menos como se diz no Recife: na falta de tu, vai tu mesmo. 

E assim saí da livraria com minha caixa da Sony a100, me sentindo meio idiota, é verdade, mas ao mesmo tempo aliviado por saber que estava indo para terras muito distantes e que nenhum fotógrafo ia perguntar o que eu tinha na cabeça para trabalhar com Sony…  

… mas a danada brilhou, viu. Brilhou demais. 

  • Rodou comigo por boa parte do Leste Europeu
  • Rodou Portugal norte a sul, levando água e areia
  • Não reclamou do calor no deserto do Saara na Tunísia
  • Segurou a onda de neve e 25 graus negativos
  • Levou porrada nos protestos em Budapeste
  • Sobreviveu a um coquetel molotov que jogaram nela
  • Foi detida temporariamente na Polônia
  • Foi violada por um militar na Romênia em estado de sítio
  • Foi arremessada da mochila por um oficial de fronteira
  • Foi chacoalhada inúmeras vezes na minha mochila velha
  • Aguentou a aridez e os pedregulhos do sertão nordestino
  • Nunca foi usada em tripé.
  • Nunca vazou bateria e nem perdeu carga.
  • Nunca viu um kit de limpeza na vida. 

No meio desse histórico de RAMBO, ela fez fotos muito lindinhas para Folha de S. Paulo, Diario de Pernambuco, revista Carta Capital, revista do Banco do Brasil e uma meia dúzia de sites.

Eu devia ter casado com essa câmera. 

Mas a exemplo das pessoas mais importantes na vida da gente, levou um bom número de anos para eu reconhecer o valor da criatura. Sim, é claro que me arrependo de ter deixado ela ir embora. Mas, ao mesmo tempo, talvez com as pessoas também seja assim: ninguém “deixa” ninguém ir embora. Elas simplesmente se vão. 

E minha a100 se foi porque era a hora dela. Foi lindo. Um beijo. Volta para mim!

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