Paulo Rebêlo | abril 2021
Fiquei um ano sem fazer café em casa. Não foi promessa e nem desgosto. Continuava bebendo aos litros na rua. Antes, durante e depois das refeições.
Em casa, porém, não tinha coragem.
Até que num domingo qualquer, desses tantos que vejo o sol nascer na varanda enquanto escrevo, resolvi ignorar as lembranças e tirar a cafeteira do armário.
Peguei a bolacha creme-craque, o biscoito Treloso de chocolate, o pote de requeijão e, abracadabra, meu banquete gourmet estava servido.
Fui buscar minha pequenina xícara de estimação e não achei.
Revirei a casa inteira. Abri as caixas de papelão. Empurrei o sofá. Sacodi as mochilas. Olhei dentro do armário de roupa. Nada.
Ela tinha levado a xicrinha.
Só eu usava aquela xícara sem graça. Aliás, era a única xícara pequena de casa, a única xícara da minha vida.
…
Eu sei, eu disse a ela para levar tudo, até os cotonetes, mas não imaginei que ela levaria “minha” xícara. Até hoje, passado tanto tempo, não consigo dizer se a maior frustração foi ela ter levado a xicrinha ou eu ter levado um ano para descobrir que ela levou a xicrinha.
Eu poderia ter feito chá. Assim teria descoberto antes e seria mais fácil pedir de volta. Porque nos primeiros meses a gente ainda se perguntava se estava tudo bem. Mesmo que formalmente. Mesmo que para cumprir tabela. Usando ponto no final das frases e acento nas palavras. Mas ao menos havia uma brecha mínima para pedir a devolução do artefato.
Depois de tanto tempo, contudo, ficou tarde demais.
Porque quando até as formalidades de Whatsapp viram fumaça, que esperança ainda pode restar para o afeto de uma xícara?
…
Não era uma xícara especial, era a xicrinha mais sem graça possível, mas era a única xicrinha da casa. Que ela nem gostava e nunca usava. E eu aprendi a amar tanto, pois passei a vida tomando café em copo e reclamando que esfriava rápido.
Foi quando eu peguei uma xícara dela e notei tardiamente a vantagem.
Era um ritual bem simples e descompromissado. Ela misturava o café com leite em uma caneca enorme e ficava esperando esfriar. Eu acho estranho quem espera o café esfriar, mas achava fofo o jeito que ela segurava a caneca com as duas mãos e sem usar a alça, como se fosse algo bem pesado, olhando para o líquido fumaçando com medo, como se fosse um vulcão que ia tocar fogo na casa inteira.
Enquanto ela comia as frutas e outras esquisitices fitness de iogurte, grãos, cereais e pão integral, fora as coisas que eu não sabia o nome, eu ficava ali repondo o café na minha xicrinha tentando não dormir em cima da mesa.
Ela sabia e também achava fofo. E mesmo assim levou a xicrinha.
Eu sei que a xicrinha era dela. Como também eram todos os objetos da casa e apetrechos da cozinha.
Era dela, mas o afeto era meu.
…
Superei. Perdi a xicrinha, mas depois achei meu copinho de Tequila e o café se encaixou. Não gosto de Tequila, não bebo Tequila, então meu copinho de Tequila foi ressignificado e virou minha nova xicrinha.
Não tem afeto, mas tem café quente.
Foto em destaque
Xícara com café coado e fantasmas.
Cafeteria Sniff no Recife, PE. Fev/2021.
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2 comments On Uma xícara de afeto
Dos detalhes importantes que os fins nos levam né? E vão aparecendo aos pouquinhos mesmo
Tempos que não te lia, Brigaduuuuu
Há quanto tempo! Sempre troco umas mensagens com sua mãe, por onde ela anda? Faz tempo que não tenho notícias dela.