Se o homem nasce só e morre só – como pregava Aristóteles – então por que as pessoas vivem com medo de viver só?
Todo santo dia a gente escuta os homens reclamando que não aguentam mais as esposas e as mulheres que não encontram mais maridos.
Enquanto uns têm de medo de largar o osso, outros esquecem de viver porque passam a vida inteira esperando o osso sagrado cair do céu.
Em ocasiões assim, sempre imagino Aristóteles, Nietzsche e Milan Kundera numa mesa de pôquer do além.
Queria ser apenas o dealer. Distribuo as cartas e recolho os argumentos em forma de apostas. Ou apostas em forma de argumentos.
A aposta é simples: de Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) a Kundera (1929 – ), quem é capaz de encontrar alguém que viva a vida sem querer encontrar outro alguém para não ficar sozinho no mundo?
Porque quando sete bilhões de pessoas no planeta nascem programadas para viver em função desta única busca durante toda sua existência, talvez seja a hora de pedir parada, pagar a conta e se enforcar com o fio dental.
Dobremos a aposta.
De Aristóteles para cá, se durante todo esse tempo a vida inteira das pessoas se resume apenas a encontrar alguém para dividir as contas da casa e fazer menino, então por que a gente precisa pedir perdão pelos pecados, fazer planos de carreira, conhecer lugares diferentes, aderir ao PDV ou comprar livros achando que vamos aprender algo de novo se já sabemos exatamente onde isso tudo vai parar?
Nietzsche (1844 – 1900) é o primeiro a apostar tudo. All in.
Ele não tem muito cacife, estava morto quando os produtores do Battlestar Galactica escreveram os diálogos finais do seriado. Maquiaram o conceito de eterno retorno (Ewige Wiederkunft) sem dar nenhum crédito ao coitado. Tudo que acontece hoje no universo já aconteceu antes. E irá acontecer de novo. E de novo, ad infinitum.
Logo, qualquer expectativa de dar um sentido à busca pela outra metade da laranja começa a perder o sentido se daqui a outros 200 ou 2000 anos vamos continuar procurando a mesma coisa. As mesmas pessoas, com as mesmas frustrações e esperanças.
Com as fichas coloridas de seus 2300 anos de observação, Aristóteles não vai dobrar a aposta, vai apenas cobrir a de Nietzsche e pagar para ver.
Porque, para Aristóteles, o homem que vive só ou é um deus ou é um bruto. Simples assim. Mais jovem dos três, Kundera solta um sorriso de insustentável leveza e dobra a aposta de Nietzsche e Aristóteles.
Se o eterno retorno nos mostra que tudo isso já aconteceu antes e vai se repetir, toda esta incessante busca por alguém para dividir os sonhos será sempre insustentável sob qualquer ângulo. Sobre nós e sobre os outros.
Passar a vida querendo achar uma pessoa para dividir a louça suja é de um egoísmo tremendo. Ao mesmo tempo, passar a vida só, sem buscar nada, aparentemente pode se transformar em egoísmo tão grande quanto.
Se Kundera ganha esta mão no pôquer, tudo que a gente faz de bom ou mau igualmente não tem sentido se não houver outra pessoa para compartilhar a dúvida conosco. Mas se tudo é insustentável, de que adianta insistir tanto se estamos sempre fadados ao fracasso já que tudo irá se repetir ad infinitum?
“Ao fracassar, você vai tentar novamente achar outra pessoa para preencher a lacuna. E de novo. E de novo…“, responderia Nietzsche, olhando para as próprias fichas e coçando aquele bigodão gigante.
A não ser, é claro, que Kundera esteja blefando.
Alguém bate na porta do cassino.
É Albert Camus (1913 – 1960). Ele acabou de brigar (de novo) com Sartre (1905 – 1980), recolhe todas as fichas, bota uma garrafa de bourbon envelhecido na mesa, acaba com o jogo e suspende a festa dos vovôs. Trouxe um recado.
A sociedade lá fora está nos dizendo que se a gente não viver para acasalar e procriar, o mundo vai acabar. Daí veio a briga sensorial com Sarte, este homem que pregava mil existencialismos e mil poligamias, mas nunca desgrudou da Simone de Beauvoir. Deve ter morrido é de ciúmes.
Para Camus, esse pôquer é um blefe.
Enquanto uns dizem que se não batizar a criança ela não vai para o céu, outros dizem que no céu tem 76 virgens nos esperando de pernas abertas. Já que fui batizado (mesmo sem me perguntarem), então se hoje eu me converter e me alistar na jihad, terei direito a pelo menos uma ou duas dessas virgens aqui na Terra?
Só depois dizem que é simbólico. Veja bem, que virgem se tornou uma entidade meramente simbólica, só quem não sabe ainda é o Aristóteles do alto dos seus 2300 anos. Mas se é simbólico, por que a suposta Maria teve um filho e continua virgem até hoje, dois mil anos depois? Ai de quem questionar isso, será excomungado.
Excomungado de quê, de quem ou de onde, só um deus sabe. Ou um bruto.
A este ponto do devaneio, poucas pessoas sobraram no cassino e eu também começo a me retirar.
Não sou iluminado feito a Elba Ramanho que fez contato com alienígenas e abraçou Jesus Cristo. Nem feito a Xuxa que vê duendes debaixo do lençol e jura de pé juntos que a filha é um anjo celestial (além de atriz).
Tampouco sou cientista político feito a Sandy – que descobriu qual é o problema do Brasil (no twitter).
Mas tenho cá algumas fichas coloridas para apostar com esses gaiatos do além.
Vi o sol nascer e se pôr no Meridiano de Greenwhich, no Paralelo 14, na Terra do Fogo, em terras do extremo oriente, no meio do oceano, na beira do deserto do Saara, no alto de montanhas (pequenas) que escalei, dentro de cavernas que me perdi e até em campo de concentração transformado (pelos judeus) em museu.
Quase congelo meu pinto a 20 graus negativos perdido entre a Polônia e a Eslováquia, quase viro vapor de gordura a 49 graus Celsius dirigindo numa estrada de barro em Mato Grosso, perto do fim do mundo e na encruzilhada onde Judas perdeu as botas.
Por pouco não causei um incidente diplomático na Romênia durante o impeachment do presidente Traian Basescu, quase sou preso no norte da África, quase bato as botas um sem número de vezes, perdi a conta de quantos defuntos já vi do meu lado e, embora não tenha participado da 2ª Guerra Mundial, quase viro pasta de queijo roquefort debaixo de um tanque de guerra com neonazistas de coquetel molotov em mãos.
E achei tudo igual.
Diferente mesmo, só o barulho do peido que soltei.
Fez sentido na hora, talvez o vício da adrenalina; mas na hora seguinte não fez mais sentido algum.
Aristóteles vai me dizer que sou um bruto, porque aparentemente não podemos ser o deus da nossa própria vida.
Nietzsche vai coçar o bigodão novamente e dizer que nada faz mesmo sentido (a fé no absurdo) depois que voc
ê entende o eterno retorno e todas essas repetições – nossos pais, nossos avós, bisavós e 2300 anos de uma história tão rica, com pessoas tão pobres.
Kundera vai dizer que o sentido é insustentável porque, em todas as ocasiões, não havia a pessoa certa do meu lado para compartilhar a experiência. Não sei se porque ela se foi ou porque pegou o trem das onze.
Camus vai recolher todas as fichas e apagar a luz.
Para ele, você só descobre esperando outros 2300 anos ou morrendo. Se você esperar, talvez não encontre nada. Se você morrer, ninguém garante que vai encontrar coisa alguma. Seja o eterno retorno, o paraíso cristão com os anjinhos tocando harpa, o nirvana de Buda, as 76 virgens de Maomé ou um inferninho heavy metal com diabinhas ninfomaníacas vestidas de couro vermelho.
Ninguém quer mesmo saber. Uma parte vai voltar para casa porque está na hora da novela ou de levar a criança para escola.
Outra parte vai continuar buscando. E uma minoria vai continuar perguntando.
Talvez agora no carnaval eles encontrem uma resposta de que o único sentido é aproveitar enquanto se pode pular muito sem infartar, ano após ano. Tudo outra vez.
Até porque, não é sempre assim desde que você nasceu?
Ou é um blefe ou um Royal Street Flash.
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