Minha existência é um bolovo

Paulo Rebêlo | 22.dez.2020


Durante anos a fio, cascavilhei muito o meu cabeção em busca da primeira memória da minha vida.

Tento abrir meus diretórios mentais à procura do que passei a admitir como a memória zero: uma lembrança imagética, consistente e contextualizada que defina o início da nossa existência cognitiva.

É aquele momento quando passamos a ter consciência — mesmo ainda inconsciente disso — de um registro sobre a vida e as pessoas que nos cercam.

Minha memória zero só aparece aos três ou quatro anos de idade e se resume a um bolovo.

Meu pai me colocava em cima do balcão de aço inox da lanchonete e a gente esperava minha refeição preferida: um bolovo com vitamina de abacate.

No mundo gourmetizado, bolovo passou a ser chamado de ovo à escocesa.

A receita original é ovo cozido envolto em carne moída e depois empanado na farinha de rosca e frito.

Eu nunca comi um ovo à escocesa. O bolovo raiz, o bolovo que tínhamos acesso, também atendia pelo nome de ovo empanado e era apenas isso mesmo: um ovo cozido empanado, geralmente frio e murcho, mas bem baratinho e sempre visível no “aquário” das lanchonetes de antigamente.

Sempre tinha vitamina de abacate, mas nem sempre tinha bolovo. Às vezes acabava antes de a gente chegar e a seção dos bolovos no aquário ficava vazia.

Lembro que meu pai ficava mais frustrado do que eu. Não era pelo bolovo, era porque naquele dia eu ficaria sem o lanche preferido; mas essa parte não busquei na memória, só entendi o contexto décadas depois do bolovo.

Lembro do gosto do bolovo e do sabor da vitamina de abacate. Como se a gente tivesse ido lá ontem. E eu ainda estivesse sentado no balcão com as pernas balançando, segurando o bolovo com cuidado, para não cair, enquanto ele toma um café pingado com pão e manteiga.

Lembro da atendente trazendo a vitamina de abacate num copo grandão bem típico da época; mas não lembro do rosto e de nenhum detalhe sobre ela. A exemplo de várias outras memórias que vou buscar, o rosto dela é uma imagem meio esfumaçada, sem nitidez, como se minha subconsciência estivesse tentando juntar os pixels para formar uma imagem.

Além do balcão e do aquário, não lembro mais de nada sobre a ambientação da lanchonete, apenas que era barulhenta, embora naquela época o barulho não me incomodasse.

Também não recordo, mas por eliminação imagino que a gente vinha de casa até a lanchonete, para depois ir para o trabalho dele em Santarém. Mas não lembro da rua onde ficava a lanchonete e nem do entorno.

Do trabalho, lembro apenas do extenso muro amarelado com as letras garrafais da Diocese de Santarém.

Parece poético, mas talvez seja uma injustiça do universo que minha memória zero seja um bolovo. Ou talvez uma injustiça existencial com a senhora minha mãe.

A criatura abre mão da vida dela, carrega um balofo na barriga por nove meses, enfrenta um parto complicado por onde eu quase não sobrevivo, num hospital insalubre nos cafundós do Pará onde Judas perdeu as botas, depois tira leite de pedra e faz sopa de vento para alimentar o bruguelo, e aí a primeira memória desse infeliz é um bolovo?

Autoconhecimento empanado

Não apenas pela injustiça parental, mas também pela curiosidade e pelo autoconhecimento, já tentei acessar camadas mais profundas da minha memória em busca de lembranças anteriores ao bolovo.

Queria lembrar, com todos os pixels formados e com nitidez contextualizada, quem eu era e quem eram as pessoas antes dos três anos de idade.

Todos os tipos de álcool que tive acesso não foram suficientes para abrir esses subdiretórios mentais escondidos. Nem mesmo aquele absinto com 82% de teor alcóolico, e uma caveira de veneno no rótulo, que eu achei na Romênia e trouxe para o Brasil.

Fiz pequenas incursões em chás de cogumelo, frequentei grupos de ayahuasca (até me expulsarem por falta de engajamento), tive experiências breves com ácidos lisérgicos, ativei o olfato e a adrenalina com outras pequenas ilicitudes, mas sempre falhei retumbantemente.

Tudo que sei dos meus dois primeiros anos vem de fontes secundárias. Do que me contaram os parentes. Ainda tenho esperança, mas não perco mais o sono e a meditação com a minha história pré-bolovo.

Mudei a estratégia.

Em anos recentes, tenho passado para o papel o que é visualmente consistente e em alta definição na minha memória de elefante gordo.

E tenho deixado para meditar sobre o que é apenas sensorial, sem imagens bem definidas, mas que também colaboram para moldar este balofo-bolovo no tempo-espaço desta vida.

Com tanta gente próxima morrendo ou quase morrendo, não apenas de Covid-19, passei a rascunhar esse investimento memorial enquanto ainda é tempo e enquanto a minha própria memória não começa a falhar.

Ou a ficar do tamanho de um bolovo.


Foto em destaque:
Budapeste, Hungria | 24.abr.2007
Registro em baixa velocidade da escadaria da Central European University
Sony a100 | 60mm | 1,3 sec | f/5.6 | ISO 100

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