Literatura // Acordo ortográfico divide a opinião de escritores sobre criação de nicho de mercado para autores africanos
Paulo Rebêlo
Diario de Pernambuco
15.março.2009
Ainda é um tabu no mercado editorial. Linguistas apresentam opiniões divergentes. Acadêmicos nem sempre querem expor suas ideias sobre o assunto. Escritores se dividem entre a esperança e o ceticismo. E sob o topo da polêmica, reside um continente desconhecido para a maioria dos brasileiros – África – e uma nação lusófona que transcende fronteiras e culturas.
Até que ponto o acordo ortográfico, também conhecido popular e erroneamente como “reforma ortográfica”, pode estabelecer um nicho de mercado para os autores africanos no Brasil? Hoje, trata-se de uma abertura incipiente. Não somente pelo conservadorismo das editoras, mas, também, pelos custos e pelas conhecidas diferenças entre duas línguas portuguesas eventualmente estranhas entre si.
Um forte movimento de escritores e acadêmicos aposta no acordo ortográfico – cuja adoção começou agora em 2009 e tem prazo limite até 2012 no Brasil – como forma de apresentar ou reintroduzir a excelente literatura produzida na África. São autores que escrevem em português, faturam prêmios diversos, alguns são bastante (re)conhecidos internacionalmente. Enquanto, no Brasil, a maioria de nós sequer ouviu falar de Mia Couto, Ondjaki, Rogério Manjate, José Eduardo Agualusa, Pepetela, Paulina Chiziane, Ruy Duarte de Carvalho, Manuel Rui, Luis Carlos Patraquim, Luandino Vieira etc.
Para o grupo dos otimistas, a padronização da língua portuguesa pode resultar na expansão do tímido mercado editorial brasileiro, além de aquecer as relações entre o Brasil e a África. Indo mais além, pode apresentar um mundo completamente novo para os leitores, a partir de países lusófonos como Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau, Timor Leste e até mesmo Macau, na Ásia.
Os céticos, por outro lado, lembram de iniciativas similares em décadas passadas – que não deram certo – e reforçam a noção do excesso de conservadorismo dos editores de livros, os quais investem apenas em títulos de sucesso em outros países ou bancados a granel pelas grandes editoras.
O ceticismo também é detectado nos próprios autores. Ávido por novos mercados, o escritor moçambicano Rogério Manjate frisa que, ao menos em Moçambique, há uma similaridade com o Brasil no sentido de que o mercado é movido pelos interesses das editoras, não dos leitores. “Com a unificação da língua, a importação de livros vai aumentar ligeiramente porque os leitores [brasileiros e portugueses] não vão mais se importar com as diferenças ortográficas. Mas na prática, a verdade é que não existe interesse na literatura africana”, dispara Manjate, contrariando a opinião de acadêmicos de que as diferenças do idioma nunca poderão ser revertidas por um acordo ortográfico.
O motivo de tanto desconhecimento, Manjate resume: “é inegável a presença da cultura africana no Brasil. Mas o Brasil não conhece a África… porque a África é que foi ao Brasil. O Brasil nunca fez o mesmo”, lamenta. Nelly Carvalho, professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), acredita que é por conta de realidades como essa que o acordo pode, sim, beneficiar um melhor conhecimento literário vindo da África. “Não tenho dúvidas de que, a médio prazo, o acordo ortográfico vai fazer com que tenhamos mais livros africanos nas prateleiras”, explica, ao resumir sua conversa em uma feira literária com o escritor africano José Eduardo Agualusa sobre o assunto.
Na opinião do professor Mário Cesar Lugarinho, da Universidade de São Paulo (USP), as vantagens do acordo ortográfico, além da uniformização ortográfica, são a economia em revisores gramaticais, sejam eles humanos ou digitais; a economia em dicionários; a economia em papel a ser impresso; e, certamente, o reconhecimento, entre os falantes, de uma língua comum, como acontece com toda comunidade falante do espanhol, do inglês, do francês ou do alemão.
Saiba mais
O acordo ortográfico passou a vigorar no Brasil em 1º de janeiro de 2009. O prazo oficial é de que até 31 de dezembro de 2012 a adaptação seja feita de maneira completa. Até lá, as formas antiga e atual convivem juntas, inclusive em concursos públicos, exames vestibulares e provas escolares. Para as escolas, a adesão à reforma deve ser feita até 2010. As mudanças atingem aproximadamente 0,5% das palavras grafadas no Brasil contra 1,6% em Portugal. A intenção oficial do acordo é unificar o registro escrito nos oito países de língua portuguesa: Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Brasil e Portugal. Mais de 200 milhões de pessoas falam português em todo o mundo. O primeiro acordo para a harmonização das duas diferentes ortografias foi assinado em 1990, com início da vigência marcado para 1994, mas nenhum dos sete países de língua oficial portuguesa (Timor-Leste ainda não era independente) ratificou o tratado.
Um longo e sinuoso percurso literário
Se é verdade que podemos descobrir o mundo por meio da leitura, nada mais justo do que abrir as portas à literatura africana, berço da civilização e cuja história se confunde com o próprio nascimento do Brasil como nação. O caminho, contudo, é sinuoso.
Mário Cesar Lugarinho, coordenador de pós-graduação de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), cursou graduação em Letras na década de 1980 e lembra de, já na época, ouvir falar da necessidade de um acordo ortográfico entre os países de língua portuguesa. “O principal argumento é que, das línguas modernas de origem européia, a portuguesa é a única que admite duas grafias diferentes”, relembra o professor da USP.
Em artigo disponível no Museu da Língua Portuguesa, o professor José Luiz Fiorin, também da USP, explica juridicamente a situação. Um sistema vigora no Brasil e outro, em Portugal e nos demais países lusófonos. De acordo com Fiorin, os doissistemas são oficializados por um dispositivo legal, no caso do Brasil a lei 2.623, de 21 de outubro de 1955. “Logo depois da independência do Brasil, os escritores diziam que não bastava que houvesse uma independência política de Portugal, era preciso também estabelecer uma independência cultural”, escreve Fiorin, lembrando que as diferenças de grafias não são substanciais e não impedem a compreensão dos textos.
A compreensão linguística pode até não ser prejudicada. Mas, na opinião do escritor Rogério Manjate, na prática há uma enorme diferença. “Emprestei a um amigo aqui em Moçambique contos de Hemingway numa tradução brasileira e ele desistiu de ler porque não conseguia conceber a escrita de Hemingway em expressões como “cara” e “tira”, a colocação do pronome antes do verbo e coisas assim”, lembra.
Situação similar aos brasileiros que não conseguem assimilar os clássicos “gajo”, “fixe” e “ecrã” de Portugal. “Neste ponto, nenhum acordo ortográfico terá como reverter”, lamenta Manjate, com honesto ressentimento sobre a falta de interesse do Brasil. “Já fui abordado por brasileiros, de universitários aos mais modestos, que pensavam que África é um país e Mandela é que é o presidente da África. Ou pensam que todo africano é yoruba”, ironiza.
De Moçambique, Manjate explica que as pessoas leem edições portuguesas e brasileiras. “Somos pobres, lemos o que nos chega às mãos. E quase sempre somos obrigados a ter conhecimentos de francês e inglês para podermos ler no original, já que as traduções são lentas e poucas”, lamenta. “E a maioria dos países africanos publica apenas os seus autores nacionais porque não têm capacidade para comprar os direitos autorais e pagar a tradução, já que o número de leitores é também baixo para permitir um melhor encaixe financeiro”, situa Manjate.
Mais otimista, Mário Cesar Lugarinho tem plena convicção de que a circulação e publicação de obras africanas é um fato incontestável. “Cresce porque há leitores que demandam a leitura, cresce porque há mercado para a sua publicação, cresce porque há qualidade nestas literaturas”, assume.
Redescobrimento da nação lusófona
Os meandros da padronização da língua portuguesa são mais complexos que simples conflitos econômicos ou egos conservadores. Desde suas aulas de graduação nos anos 80, o professor Mário Cesar Lugarinho lembra que havia o receio de se criar um fosso cultural entre o Brasil e outras nações lusófonas, por conta da escrita não uniformizada. O cenário, vale a pena recordar: a revolução de abril de 1974 em Portugal, a luta das nações africanas contra a ditadura portuguesa de Salazar e o Brasil entre os últimos anos da ditadura militar e os primeiros da redemocratização.
Filólogos consagrados como Evanildo Bechara acreditam que, se houvesse um acordo ortográfico naquele momento, o Brasil teria garantida a livre circulação de material impresso vindo de um Portugal recém-democrático e das nações africanas libertadas do jugo colonial português. “Foi uma noção bastante utópica, é verdade, mas embalou as primeiras discussões sobre o acordo. Do debate surgiu, em 1990, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)”, ensina Lugarinho, da USP.
Outro ponto exposto pelo acadêmico é que, no início das discussões, não se levou em conta o principal fator: o alto custo que as publicações portuguesas alcançavam – e ainda alcançam – no Brasil. “A maior parte dos volumes africanos chega ao Brasil através da incipiente distribuição das editoras portuguesas, que por sua vez dependem de livrarias especializadas e de importadores”, explica.
Por enquanto, o conhecimento brasileiro sobre as obras africanas partem de iniciativas isoladas, geralmente “apostas” das editoras empurradas pelo sucesso (lucro) em outras praças. Na década de 1980, a Editora Ática tentou publicar uma coleção denominada Autores Africanos, contemplando autores de língua portuguesa das jovens nações africanas, mas “abrasileirando” a escrita.
Nos anos 90, a Nova Fronteira tentou divulgar a obra de Mia Couto e, ao mesmo tempo, a Record “redescobriu” a obra de Pepetela, vencedor do Prêmio Camões de 1997. Luandino Vieira também tem tido alguns títulos republicados desde2006 pela Companhia das Letras – a mesma editora publicou, em 1996, o cabo-verdiano Germano Almeida e, em 2004, a moçambicana Paulina Chiziane.
Há iniciativas ainda mais isoladas, como da editora Gryphus ao publicar, sistematicamente, o angolano José Eduardo Agualusa desde 1998. Em comum, todas essas obras e editoras seguem a grafia da última reforma ortográfica brasileira de 1973. “Movimentos assim, mesmo que isolados, têm levado a efeito uma maior aproximação entre nossas culturas, com destaque para a literatura”, pondera Lugarinho.
Reação do mercado ainda é incógnita
O escritor africano Luis Carlos Patraquim, que mora atualmente em Portugal, toca em um ponto delicado para os brasileiros: a não-aceitação do acordo ortográfico entre os portugueses. “Chegou-se a fazer um abaixo-assinado para ser entregue ao Parlamento, contra o acordo. Angola e Moçambique, por outro lado, quase não se pronunciam sobre a questão. E Cabo Verde já anunciou a adoção da nova ortografia”, revela Patraquim.
Na última Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas (Fliporto), em novembro passado, o escritor e editor angolano José Eduardo Agualusa defendeu o acordo, argumentando que o português “é uma construção conjunta dos países lusófonos e não propriedade de Portugal”, cuja resistência foi, segundo ele, uma reação bem conservadora. Sócio da editora Língua Geral, Agualusa disse que não podia vender seus livros infantis em Moçambique, pois as obras são editadas com a ortografia adotada no Brasil. A partir deste ano, ele acredita que o problema será resolvido em definitivo. “Portugal acha que alíngua é dos portugueses. Esquecem que eles foram colonizados pelos árabes e que hoje o Brasil detém 95% dos falantes”, alfinetou, durante a Fliporto.
Trata-se de visão um pouco diferente a do escritor Luis Carlos Patraquim, menos otimista em relação ao mercado de livros africanos no Brasil. “Pode ajudar, mas não é a questão principal”, pondera. “Falta uma articulação geral, que envolva os países da CPLP, no sentido de efetivamente assumir a língua portuguesa como instrumento de cultura e mais-valia de todos. Seja nos livros, no ciberespaço, na produção científica, na imprensa…” avalia Patraquim, ao julgar o acordo omisso sobre essas variáveis.
Há uma série de fatores envolvidos, é verdade. Não apenas políticos e econômicos. O linguista e autor do best-seller Preconceito linguístico, Marcos Bagno, da Universidade de Brasília (UnB), não acredita em nenhum tipo de abertura causada pelo novo acordo ortográfico. “Nosso mercado editorial (no Brasil) é completamente colonizado e só se interessa pelo que é produzido na Europa ocidental e nos Estados Unidos. Até mesmo a literatura latino-americana, com exceção dos nomes consagrados, tem pouca entrada. Perceba que a literatura portuguesa, com exceção do José Saramago, também tem pouco espaço nas nossas livrarias”, critica.
Em artigo publicado pela Associação Brasileira de Editores de Livro (Abrelivros), o superintendente da editora Melhoramentos, Breno Lerner, mostra-se outro crítico do acordo como brecha para novos mercados. “Poucas vezes ouvi uma besteira tão grande. Só o fato de lá não se usar gerúndio já impossibilita qualquer coisa. Além disso, os países africanos em questão são de língua oficial portuguesa, mas ninguém está falando que proporção da população fala efetivamente o português”, pondera Lerner, no texto disponível no site oficial da Abrelivros.