Tua vida é doce, mas o meu café é amargo

Paulo Rebêlo | agosto.2020


São Paulo é a oitava cidade mais populosa do mundo, a décima mais rica e a décima-primeira cidade mais globalizada deste nosso planeta que ainda é redondo feito eu. Mas quando eu paro de manhã cedo para tomar café, em qualquer padaria de bairro, me sinto uma besta quadrada.

Parece que cheguei de Marte só porque pedi um café sem açúcar. Não precisa ser uma xícara inteira, sabe? Basta um dedinho. Olha, eu ficaria muito feliz se fosse um nescafé em pó mesmo.

Os atendentes desviam o olhar. Fingem invisibilidade. Talvez cansados de responder aos alienígenas fazendo pedidos absurdos em idiomas intergalácticos.

Se a padoca for um pouco mais arrumada, me sugerem o expresso da máquina. Falam isso como se estivessem me mostrando uma novidade tecnológica revolucionária que chegou há pouco tempo (de Marte, talvez) e agora o café amargo passou a existir.

Meu senhor, se eu quisesse café de máquina, fazia em casa. Melhor ainda, comprava uma mochila maior e ia trabalhar com minha própria máquina de expresso e pendurava as cápsulas no pescoço. E ainda diria que era um colar indígena.

O único sentido de passar na padaria, de manhã cedo, é sentir o cheiro do café feito na hora. E do pão quentinho com (muita) manteiga derretendo por cima. É uma experiência sublime porque, via de regra, meu horário de dormir é pela manhã. Então, padaria na minha vida é sempre exceção.

Mas na cidade mais populosa da lusofonia, no centro financeiro e mercantil da América do Sul, café amargo também parece uma exceção e o único cheiro que consigo sentir é do açúcar queimado, e o único gosto é tomar café com gosto de mel, como se eu fosse uma abelha gorda alienígena.

Certa feita, uma senhora ouviu meu pedido e lamentou. Só uma pessoa amarga pode gostar de café amargo, ela disse. Minha senhora, você tem razão. Deixe minha amargura em paz. Enfie seu café doce no centro da sua goela.

Um velhinho comentou que não confia em pessoas que tomam café sem açúcar. Eu agradeci. Ele fingiu que não entendeu.

Várias pessoas já se meteram na minha amargura. Como se fosse preciso um argumento válido, uma desculpa eficaz ou uma razão matemática para tomar café amargo na padaria deles.

Intergaláctico –

Faz tempo que já desisti das padarias de bairro em São Paulo. Também não gosto das padarias chiques do tipo delicatessen, porque aí qualquer café custa um rim. Resta-me apenas a tranquilidade dos lugares que frequento regularmente. De tanto pedir a mesma coisa, já não me perguntam mais.

Mas ainda me trazem o maldito adoçante.

Que sempre sobra. E fica ali, parado na mesa. Para no dia seguinte, no mesmo lugar, fazer o mesmo pedido, vir o mesmo café. Com o mesmo adoçante.

Dia desses, um garçom amigo veio correndo me falar da super novidade que a esposa dele descobriu. Perguntou se eu conhecia o xilitol.

Respondi que xilitol é a mãe.


Foto em destaque:
Milkshake de pistache e café expresso. Sem açúcar.
Recife, PE. Agosto de 2020.
iPhone XS | 1/120 | f/1.8 | ISO 80


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2 Comments Tua vida é doce, mas o meu café é amargo

  1. tania teresinha lopes

    Paulo Rebelo!
    Te achei novamente!
    Eu não ,desapareci nem o Covid me pegou(ainda!!!!)
    Eu havia perdido o meu contato por aqui!
    Vou continuar te lendo, se Deus quiser!
    Te cuida, rapaz!
    abrs
    Tânia Lopes

    Reply

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