O exemplo da União Européia

Paulo Rebêlo (email)
Revista Backstage – ed. maio 2007

A Comissão Européia é considerada, hoje, a principal e mais eficaz instituição democrática estabelecida quando se trata de regulamentações. Não é a prova de falhas, há casos notórios que são mais políticos do que pragmáticos, apesar de serem a exceção. Mesmo assim – ou talvez principalmente por isso – o mundo tem muito a aprender com a União Européia sobre o ato de lidar com o poder das grandes corporações. No final, nem sempre a Comissão ganha e os grandes poderes econômicos prevalecem, mas a questão crucial, aqui, não é o resultado final: é a discussão levantada pelas denúncias que a Comissão recebe ou, ela mesmo, formaliza.

O que falta na relação entre indústria fonográfica, público consumidor e artistas é, entre tantas outras coisas, um debate aberto. Os mais céticos, com certa razão, haverão de dizer que o debate já é aberto, mas apenas pelo lado do consumidor e dos artistas, não da indústria. O máximo de abertura que as pessoas costumam receber das gravadoras são os boletins oficiais que a pirataria e o MP3 têm causado às vendas de CDs. Fora isso, o que se ganha são os CDs com proteção anticópia através do DRM, como vimos em colunas anteriores; preços altos e pouca receptividade com novas tecnologias para democratizar o acesso à música.

Um dos alicerces temáticos desta coluna, nos últimos anos, é a possibilidade de a sociedade conseguir mudar este sombrio cenário. Não se trata apenas de música digital, de arquivos MP3 ou de downloads de graça na internet, mas, sim, de importantes fatores relacionados à privacidade, liberdades civis, defesa do consumidor e, obviamente, economia de mercado.

A questão é que, quando economia de mercado é entendida como economia “para” mercado (exclusivamente às empresas maiores), a última ponta da cadeia de consumo (você) vira refém e se vê nos cenários descritos em nossas últimas colunas sobre o Digital Rights Management, o DRM. Originalmente criado para coibir a pirataria musical, o DRM se transformou em uma poderosa arma da indústria, fator de barganha com lojas virtuais e, infelizmente, um pesadelo para o consumidor que quer pagar pelo CD, baixar música legalizada na internet e, independentemente de qualquer coisa, ter liberdade de ouvir música quando quiser e onde quiser – situação que o DRM nem sempre permite.

União Européia Corporativa –

Executivos de empresas como a Microsoft, por exemplo, têm pesadelos só de ouvir falar em União Européia. É naquele continente onde gigantes com práticas explicitamente ilegais e monopolistas não conseguem ditar as regras, como ocorre em grande parte dos Estados Unidos e do chamado “mundo globalizado”.

Vimos, recentemente, o episódio da carta aberta de Steve Jobs, todo-poderoso da Apple, reclamando das gravadoras sobre a proteção anti-cópias que não serve para nada além de infernizar a vida do consumidor. Ao mesmo tempo, também escrevemos neste espaço que, ironicamente, a Apple sempre foi – e continua sendo – uma das principais incentivadoras de recursos do quilate do DRM.

Para colocar ainda mais lenha na fogueira, recentemente a Comissão Européia enviou acusações formais para algumas das grandes gravadoras e, olha só, para a Apple também. A Comissão afirma que essas empresas estão restringindo as vendas de música na Europa. De acordo com Jonathan Todd, porta-voz do órgão executivo da União Européia, acordos entre a Apple e as gravadoras violam as regras do bloco sobre práticas comerciais. Em nota oficial, o porta-voz transmitiu a posição da Comissão Européia sobre o assunto: “consumidores só podem comprar música da loja online iTunes em seu país de residência e portanto estão restritos em sua escolha de onde comprar música, e consequentemente que música comprar e a que preço”, disse Todd.

A Apple garante que quer criar uma loja online européia, mas tem sido impedida pelas exigências da gravadoras. “A Apple sempre tentou operar uma única loja européia, acessível por qualquer um a partir de qualquer Estado membro. Mas fomos aconselhados pelas gravadoras e editoras sobre a existência de certos limites legais aos direitos autorais que elas poderiam nos conceder”, informou a maçã, também em um comunicado formal à imprensa.

A investigação da Comissão começou em 2005, a partir de uma queixa de um grupo de consumidores britânicos, chamado “Which?”, que afirmou que os clientes da iTunes na França e na Alemanha precisavam pagar apenas US$ 1,32 por música comprada, enquanto os britânicos eram obrigados a pagar US$ 1,56.

Tudo tem seu preço –

Enquanto a Comissão joga lenha na fogueira, a Apple e a EMI (uma das quatro gravadoras gigantes que detém 70% do catálogo mundial) anunciaram um acordo para vender músicas pelo iTunes sem proteção anticópias. No entanto, para comprar os arquivos sem DRM, o consumidor precisará pagar mais caro, coisa de trinta centavos a mais por faixa.

A iniciativa da EMI abre um enorme precedente para a indústria fonográfica. Em entrevista ao portal Universo Online, o presidente da Associação Brasileira de Música Independente, Carlos Eduardo de Andrade, disse que “o DRM não é um monstro restritivo, é apenas uma ferramenta de legalização, um direito do proprietário do conteúdo que pode inclusive liberar o acesso a ele.” Completou afirmando que “é um direito do autor fazer com sua obra o que quer que seja, e o DRM lhe dá essa possibilidade —a idéia do criador da Bíblia é disseminar a palavra, então ele dá o livro de graça. Mas a indústria fonográfica, assim como qualquer outra indústria, não está no mercado por caridade”.

Defensores de liberdades civis e associações de defesa do consumidor, como é o caso da EFF (Electronic Frontier Foundation) alegam que o uso do DRM não apenas passa por cima das liberdades individuais do consumidor, como também prejudica um personagem ainda mais interessado na questão: o artista que criou a música, o autor intelectual das canções. “As empresas de entretenimento estão bloqueando o áudio e o vídeo que você possui e levando seus direitos embora”, diz manifesto da associação. E para a EFF, nem a Apple se salva —em seu guia online sobre DRM, ataca a empresa de Steve Jobs dizendo que mudanças unilaterais na política de proteção anticópias restringem os direitos do consumidor de fazer uso pessoal da música que comprou.

Para a EFF e outras associações, o DRM acaba com todas as instâncias e possibilidades jurídicas do “fair use” (algo como “uso honesto”), um conceito extremamente importante nos Estados Unidos, por exemplo. Debates sobre fair use enchem as cortes judiciais americanas há décadas e acentuaram-se desde o ápice do caso Sony vs. Betamax nos anos 80.

Logo, é fácil imaginar que música não é a única “vítima”. O recurso de proteção contra cópias de filmes em DVD, por exemplo, também usa DRM. E o caso mais notório é a tecnologia CSS (Content Scrambling System) usada nos DVDs, que antigamente significava que apenas usuários do Windows podiam assistir aos filmes no computador. Até que um garoto (o famoso ‘dvdjon’) de 14 anos quebrou o código, criou o DeCSS para quebrar o sistema DRM nos DVDs e, com isso, permitiu que usuários domésticos pudessem fazer cópias, mas, também, assistir aos filmes em ambiente Linux.

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