O jazz da aposentadoria da Michael Caine

O jazz da aposentadoria de Michael Caine e meus ouvidos musicalmente moucos

Paulo Rebêlo | outubro 2023

Descobri o que era jazz em 1992. Até hoje, nenhum outro estilo de música mexe comigo. O culpado é Michael Caine.

Claro, eu escutava várias outras músicas quando criança e adolescente. Só que nada realmente me fazia suspirar. Comecei a desconfiar que fosse mais um problema da minha cabeça, dentre tantos outros bugs que ainda viria a identificar no decorrer do tempo.

Todas as pessoas sabiam letras de músicas, cantavam alegremente, decoravam canções, berravam refrãos, gostavam de estilos diferentes e tinham artistas preferidos. Eu não via graça em quase nada, mas tentava ser “normal” e escutar o que parecia bom para os outros. Talvez eu achasse bom também. Era apenas barulho.

Hoje em dia, com exceção dos bregas rasgados de antigamente, preferencialmente no bar ou com uma garrafa de uísque por perto, não existe mais nada relacionado a música que me interesse. Só o jazz. Culpa do Michael Caine.

Nem o blues, que reconheço ser contagiante e ter exímios representantes, consegue pausar meu liquidificador de neurônios, este meu cabeção cada vez menos tolerante para vozes humanas em excesso.

Em toda minha vida, lembro de ter ido a dois shows. O primeiro, a contragosto, fui para fazer companhia, após muita insistência externa. O segundo, entrei por engano no show do Skank e, quando percebi o erro, retirei-me do lugar apressadamente antes que resolvesse explodir o palco. Eu detesto Skank. Também detesto Jota Quest e nunca entendi qual a diferença entre as duas bandas, sempre acho que são a mesma coisa ruim.

Óbvio, tem muita letra bonita da Jovem Guarda e da Tropicália, acredito de coração quando outras pessoas me falam da qualidade musical da MPB e da Bossa Nova — aceito sem contestação e até admiro, mas a sonoridade não mexe comigo. A suposta poesia dessas canções costuma soar incompreensível aos meus ouvidos musicalmente moucos.

Quando traduzo mentalmente as músicas em inglês, chego ao mesmo resultado: são iguais às nossas e falam sobre exatamente as mesmas leseiras (amor, traição, amizade, autoajuda e autoafirmação) só que em outro idioma. Talvez seja por isso que eu também não goste das modernizações do jazz e dos vocais inseridos entre o sax ou trompete do jazz clássico. Por mais bela e incrível que seja a voz de Ella Fitzgerald.

Aos 90 anos de idade, Michael Caine confidenciou ao The Guardian que vai se aposentar, depois de uma carreira que inclui uns 130 filmes em sete décadas de atuação. Não se falou em jazz. Acho incrível que nenhum jornalista pergunte ao Michael Caine sobre jazz. Sei com relativa certeza, por leituras do passado e pesquisas outras, que os filmes dele influenciaram muitos ignorantes, feito eu, a descobrir o jazz e tentar entender que danado de música era aquela.

Michael Caine sempre foi o eterno espião (depois, ex-espião) no cinema. Principalmente entre as décadas de 1960 e 1980, quando filme de espionagem era sinônimo de Guerra Fria. Devo ter visto todos os filmes europeus de espionagem graças a ele.

No filme Blue Ice, de 1992, ele é um ex-espião que virou dono de um bar de jazz em Londres e faz par romântico com Sean Young, que já tinha pirado a cabeça de todos os nerds mirins, adolescentes, adultos e coroas desde Blade Runner (1982) e Duna (1984).

Quando Michael Caine entrava no carro, ligava o som e tocava jazz. Quando estava no clube, evidentemente só ouvia jazz. E em todas as vezes, ele entrava numa espécie de transe, como se a música estivesse se mesclando com a própria mente, um lance meio psicodélico que eu achava que apenas as drogas ilícitas poderiam gerar.

Devo ter alugado a fita VHS de Blue Ice uma dúzia de vezes, só para rever aquela psicodelia de Michael Caine e tentar entender o que estava tocando. Claro que a beleza hipnótica de uma Sean Young, no auge dos 33 anos, também ajudava.

Em 1992, o acesso à internet estava na pré-história e só existia em pequenos núcleos nas universidades federais, núcleos que eu não tinha acesso. Durante um ano, todo meu contato com jazz se resumia exclusivamente ao transe musical de Michael Caine e às transas dele com Sean Young.

Perguntei a algumas pessoas da época, mas me mostravam apenas música instrumental, música de elevador e música de motel, aquelas coisas tipo George Benson, Stanley Jordan e Kenny G, este último considerado o papa da trilha sonora de motel e das novelas durante as cenas românticas. Todos bons, músicas bacanas, mas ainda bem longe e nada a ver com jazz.

Somente em 1993 que o jogo virou. Me mostraram a fotografia de um CD chamado ‘The Best of Blue Note – Vol 1’, que era uma regravação de um disco LP de 1985. Na minha ignorância extrema, ignorei essa relíquia arqueológica. Ao ler ‘Blue Note’ na embalagem, pensei que fosse coisa de Blues, não me interessei na hora.

Até que colocaram esse CD para tocar. E eu entrei em transe psicodélico.

Queria levar o CD para casa, mas não tinha CD-Player para ouvir e não conhecia ninguém que tivesse para pedir emprestado. Aliás, o tal do Compact Disc ainda era meio novidade.

Felizmente, como sempre digo, o desenvolvimento demora, mas chega. Meses depois daquele dia, graças ao CD-ROM dos primeiros computadores com kit multimídia, pude passar horas me drogando na companhia de Thelonius Monk, Miles Davis, John Coltrane, Herbie Hancock, Donald Byrd, Clifford Brown. Parafraseando uma das músicas mais famosas de Bud Powell, inclusive é primeira faixa desse álbum, fiquei ‘Un Poco Loco‘.

Em 1994, com acesso discado à internet, mergulhei de vez em centenas de faixas de jazz. Trinta anos depois de encontrar músicas que me fazem suspirar até hoje, ainda me vem a imagem de Michael Caine dirigindo pelas ruas de Londres, com o câmbio à esquerda e o volante à direita, batucando os dedos na direção enquanto escuta seu jazz.

Ok, eu também lembro da Sean Young naquele vestido preto com as costas expostas à meia luz. Ninguém é de ferro. Nem o Michael Caine, que não vai ser mais espião no cinema e nem abriu seu clube de jazz. Talvez eu ainda abra o meu. Jazz com Pizza.


Foto em destaque:
Apresentação de jazz ao ar livre.
Banda: Garanhuns Street Jazz Band.
Pau Pombo (Parque Ruber Van Der Linder).
Garanhuns Jazz Festival, março 2009.
Nikon D90.

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