Terra Magazine – abril.2010 Não parece, mas toda mudança me parte o coração. Seja de bairro, cidade ou país. Seja em lugares onde morei cinco anos, cinco meses ou até mesmo cinco semanas, como já aconteceu certa vez. Do dia em que cortaram meu umbigo gordo até hoje, são 14 mudanças de CEP. Com exceção de uma, na qual ainda era muito guri, lembro de todas as outras 13 como se fosse hoje. Por mais desregrados que tentemos ser, sempre sobra saudade por abandonar as poucas raízes que a gente deixa pelo caminho. E me pergunto se vamos voltar a nos encontrar um dia, nem que seja para um café com bolo de bacia na padaria. É o garçom no bar da esquina que já se considera um amigo e fala dos problemas domésticos, pede conselhos e sempre lhe consegue um pedaço extra de bife sem cobrar nada. É o porteiro que está sempre dormindo quando você chega bêbado e fica no meio da rua, esperando ele acordar e abrir o portão, como se nada tivesse acontecido. É o zelador evangélico que lhe acha um devasso. A secretária que abre um sorriso largo quando lhe vê, por causa do bombom de cupuaçu.
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Paulo Rebêlo Terra Magazine 23.março.2011 Voltar a nadar foi uma das decisões mais acertadas que tive nos últimos tempos, se não fosse pelas crianças. Dos outros. Por não ter horário fixo e chegar em qualquer horário, imaginei que poderia dar minhas braçadas em paz, sem distrações e sem concorrer com ninguém. A mocinha da secretaria tentou me alertar sobre elas, mas foi em vão. No primeiro dia da coincidência de horários, fui fazer meu alongamento normalmente, mas agora estava diante de todo aquele barulho infernal típico de quando várias crianças estão na piscina brincando. Fiquei com vontade de jogar ácido muriático na água, mas depois pensei melhor e deu até pena. Não das crianças, mas dos pais. Naquele estabelecimento, aparentemente só tocam dois CDs: um da Ivete Sangalo (Ao Vivo em Salvador) e outro de uma compilação bate-estaca dos “Baladeiros de Goiânia”. Está escrito na capa do CD, tive que ir lá conferir para ter certeza que não estava delirando. Fui cobrar um desconto na mensalidade (por insalubridade e sanidade mental) e as professorinhas de maiô entrando na bunda me acharam um tiozinho muito engraçadinho, como se tivesse contado uma piada. Se eu soltasse uma piadinha de verdade sobre o
A ciência tem muito a aprender com o carnaval brasileiro. Durante os dias de folia, a sociedade se divide (por conta própria) em pessoas normais que vão brincar carnaval ou aproveitar o feriadão viajando; e as pessoas anormais que ficam em casa e trabalham sem ninguém pedir ou querem fugir da esbórnia momesca. Poderia ser simples assim, mas não é. Fulano passa o ano inteiro sedentário, não sobe sequer um andar de escada quando falta luz no edifício (melhor esperar fumando na portaria) e, durante o carnaval, o mesmo ser humano dorme apenas quatro horas por dia e passa cinco dias subindo e descendo ladeira, pulando atrás de trio-elétrico por oito horas seguidas, não faz nenhuma refeição decente e vive apenas comendo batata frita e coxinha de aquário. No dia seguinte a criatura está inteirinha da silva, zero bala, já acorda fantasiada, gritando e pulando igual ao boneco Chucky do Brinquedo Assassino, aparentemente entalado de pilhas alcalinas e metanol nas entranhas. Como isso pode ser normal? A televisão já produziu o Hulk – era um cientista antes do acidente no laboratório – mas até hoje a nossa ciência não descobriu de onde essas pessoas normais, que brincam carnaval, tiram tanta energia do nada. Agora
Enquanto muita gente passa o mês de dezembro fazendo listas de tarefas para o próximo ano, eu só consigo pensar nas malditas caixinhas de Natal. Quem inventou essa desgraça? Na maioria dos lugares onde penduram a caixinha, o pessoal recebe 13º salário. Eu não recebo 13º há muito tempo e ainda preciso colaborar para o chester alheio? Todo ano penso em fazer uma caixinha só para mim. E pendurá-la no pescoço. Na barriga eu penduro uma placa com letras verde-limão “eu não recebo 13º, por favor colabore”. Nas costas poderia pendurar uma cópia da minha carteira de trabalho. Desisti da idéia porque vi que não dá para lutar contra a concorrência. Nos últimos seis meses, quase todo dia tomo café da manhã na mesma padaria ao lado de casa e levo moedinhas contadas para os R$ 2,50 do pão com queijo na chapa. Nos últimos seis dias, além de ouvir um sonoro bom dia (detesto), os dois rapazes da chapa ainda fazem questão de dizer que capricharam no queijo. Claro, de frente para mim tem uma caixinha de Natal. Vou com minhas moedinhas contadas até o caixa. Lá tem outra caixinha. Como se a gente fosse um porquinho de madeira
Mal havia saído da adolescência quando conheci um cara chamado Cegonha. Esportista, ele treinava bem próximo de onde eu morava na época. Às vezes, eu passava naquela casa velha caindo aos pedaços a qual chamavam de academia. Quase sempre, ao entrar, me deparava com um homem sozinho no telhado. Ele mirava o horizonte e por horas a fio fazia exercícios de respiração como se estivesse num universo paralelo, alheio a tudo que acontecia lá embaixo. Uma visão curiosa, quase psicodélica. Todas as pessoas “normais” embaixo e um único ser humano no telhado. Eu chegava, ia embora, ele continuava no telhado. Talvez uma espécie de templo, não sei ao certo. Nunca tive coragem de subir, apesar da recorrente curiosidade em saber como era a vista ali de cima.
Despedir-se de pessoas é fácil. Elas sempre podem ir até você ou você voltar a elas, por mais difícil que seja e por mais distante em que estejam. Pode não querer, mas a opção existe. Complicado é se despedir de cidades e lugares pelos quais você criou raízes. Tanto faz se passou uma vida inteira ou se criou vínculo a partir de poucas visitas. Daqui a três anos, podemos pegar um avião e ir até São Paulo ou ao Sri Lanka. Mas daqui a três anos, talvez eu queira visitar o bar onde tinha conta e meu fiado não exista. O garçom pode ter arrumado outro emprego. A prefeitura pode ter fechado o boteco para expandir a rua. A construtora pode ter erguido um edifício. E todo mundo vai embora com a memória enterrada.