Newsletter Paradox Zero | 12.dez.2019
Nos primórdios da informática, bem antes de a internet existir, quando a gente queria convencer um cliente a contratar serviços de backup ou armazenamento seguro – em disquetes importados de alta densidade, zip drives, fitas DAT ou DDS – eu gostava de usar um ditado bastante popular entre os micreiros da época:
Só existem dois tipos de usuários: aqueles que já tiveram problemas com o HD e aqueles que ainda vão ter problemas com o HD.
Não costumava funcionar.
E até hoje continua sendo uma venda bem difícil aqui na agência.
Porque muita gente acredita que basta comprar um HD novo para substituir o HD quebrado.
Acontece que é impossível precificar arquivos.
E continua sendo um desafio ao bom senso o quanto gestores e tomadores de decisão têm dificuldade em entender essa impossibilidade.
Seria equivalente a tentar precificar sua memória e suas experiências. Você consegue?
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Perdi um HD pela primeira (e última) vez no início dos anos 90. A gente ainda chamava disco rígido de Winchester. O meu tinha a incrível capacidade de 20 megabytes de espaço.
Hoje, com 20 Mb você não armazena sequer uma foto em alta resolução. Algumas imagens que trabalhamos por aqui chegam a ocupar 100 Mb para uma única fotografia em negativo digital.
Meu HD guardava milhares de linhas de código, dezenas de pequenos sistemas, minhas listas de filmes e meus primeiros escritos até então.
E talvez algumas fotos altamente pixeladas da Luciana Vendramini na Playboy de 1987, edição 149. (memória não tem preço mesmo)
Daqui a 48h, um legado inestimável da internet será apagado para sempre.
E ninguém conseguiu fazer um backup a tempo.
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No dia 14 de dezembro, em uma decisão sem a menor lógica técnica ou econômica, o mundo vai perder mais de 20 anos de arquivos e mensagens armazenadas nas listas de discussão do Yahoo Groups.
Lançado em 2001, o Yahoo Groups é uma relíquia da internet. Embora não tenha sido o primeiro produto a juntar comunidades online, foi o principal, maior, mais popular e mais democrático serviço para aproximar pessoas que queriam debater sobre absolutamente qualquer coisa.
Daí popularizou-se os termos ‘listas de discussão’ ou ‘grupos de discussão’. Foi uma prévia do que viriam a ser as redes sociais na segunda metade dos anos 2000. Não à toa, em setembro de 2010 o Yahoo promoveu uma repaginação visual e a interface web dos grupos passou a ser uma quase cópia do visual do Facebook.
A decisão de excluir o conteúdo do Yahoo Groups foi comunicada em outubro de 2019 pela Verizon, a gigante de telecomunicações que adquiriu a maior parte do Yahoo em 2017.
O Yahoo foi lançado em 1994.
Ao deletar todo o conteúdo, a Verizon vai apagar memórias ainda mais antigas. Porque mesmo sendo de 2001, o Yahoo Groups incorporou outras listas de discussão que vieram antes.
Foi o caso do eGroups, de 1997. E em 1999, o eGroups se fundiu com o OneList, serviço concorrente.
E tudo virou Yahoo Groups a partir de 2001.
Em 2010, havia 115 milhões de usuários e 10 milhões de grupos diferentes. Depois o Yahoo (sob gestão Verizon) parou de divulgar as estatísticas.
Ninguém consegue calcular a quantidade de histórias e memórias, quiçá precificar, mas várias empresas se ofereceram para fazer o backup e até mesmo para bancar o custo de manter o conteúdo no ar.
Profissionais se dispuseram a transferir os grupos para plataformas de código aberto. A colaborar financeiramente.
Tudo foi negado.
E piorou. Nas últimas semanas, a Verizon passou a bloquear o IP das pessoas e dos arquivistas profissionais que estão tentando, manualmente, copiar via software ou via código as mensagens e arquivos.
Curiosamente, o Yahoo Groups não vai desaparecer.
A Verizon vai manter o serviço no ar. Sem arquivos, os grupos públicos se tornarão privados ou restritos. Novos membros não vão poder mais se associar. Será permitido apenas por convite do administrador de um grupo.
Muitos desses administradores de grupos já morreram, outros não têm mais senha ou perderam o acesso completamente. E outros não conseguiram copiar todo o volume depois do aviso prévio de apenas dois meses.
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Como anda o backup dos seus arquivos e das suas fotos? E da sua empresa?
Até a Luciana Vendramini tinha uma cópia segura das fotos não-publicadas na Playboy.
Abraços nostálgicos e até breve: ainda teremos nosso último boletim do ano.
Rebêlo.