Paulo Rebêlo
Depois de Amanhã | outubro 2024
Na geografia e na ideologia, Guilherme Boulos (PSOL-SP) e Daniel Coelho (PSD-PE) não têm nada em comum. Nestas eleições, contudo, estão mais próximos do que gostariam. Porque ambos parecem ignorar que a Teoria da Evolução por Seleção Natural, de Charles Darwin, não trata apenas de biologia.
Na evolução biológica e também na política, sobrevive quem consegue se adaptar ao meio. Às vezes, essa adaptação é uma ruptura no status quo; outras vezes, significa manter o mesmo estado das coisas para um novo momento. A ciência natural tende a acreditar que é uma escolha involuntária na natureza; a ciência política sugere que seja uma decisão voluntária dos políticos.
Poderia ser uma decisão voluntária baseada em observações astutas sobre o que acontece ao nosso redor, mas quase nunca é. Porque campanha eleitoral tem essa pegadinha de cegar o candidato à realidade e, ao mesmo tempo, inflacionar o ego da equipe que faz a campanha.
Não se trata apenas de conjuntura política, mas também de humor e expectativa das pessoas (leia-se: eleitores) nas atuais condições de temperatura e pressão. Ao desconsiderar o momento das pessoas, a cada dois anos vários políticos incorrem naquele erro que a gente conhece tão bem no mercado e no terceiro setor: falam para um público que não existe.
Guilherme Boulos em São Paulo, Daniel Coelho em Recife, evidentemente não são os únicos (oi, Tabata) a ignorar Darwin e a seleção natural nas eleições. E embora estejam longe da regra de exceção, são casos tão atuais e emblemáticos, dentro de um contexto tão rico de aprendizado, que ficou impossível ignorar a lambança. Até agora, os dois são responsáveis por campanhas que sempre gostei de usar como referência em cursos e palestras.
Veja só.
Boulos tinha tudo para fazer uma caminhada realmente brilhante à Prefeitura de São Paulo. Bastava ter seguido a mesma fórmula que adotou em 2020, quando foi protagonista de uma das melhores campanhas políticas já feitas até hoje. No ano seguinte, não à toa, Boulos figurou na lista dos 100 líderes emergentes da Revista TIME, ranking também conhecido como 100 líderes do mundo para o futuro.
Não precisava fazer nada diferente, era só Boulos seguir a receita de bolo. Um trocadalho, aliás, que já perdeu a graça e seguem usando mesmo assim. Para a campanha de 2024, bastava acrescentar com parcimônia os ingredientes atuais, se adaptando ao tempo político e ao momento das pessoas: o apoio (formal) do PT, a figura de pai Lula (que não dá mais as caras na campanha e desapareceu neste atual momento crítico) e os pormenores de sempre que surgem a partir dos conchavos com os partidos da base. Na prática, um CTRL+C em 2020 e CTRL+V em 2024, com pequenas adaptações para a base não chorar. Sem perder a essência.
Boulos fez o oposto. Triturou a essência de sua campanha, quando o momento atual esperava justamente o que ele mostrou em 2020. E tratorou as ideias da campanha de 2020, ao adotar a conhecida (e preguiçosa) estratégia de mostrar ao público uma projeção do que gostaria de ser, mas não é: uma figura centrada e quase formal, em cima do muro, que não vai para o confronto e responde pela tangente para tentar agradar a todos. Passou a campanha inteira tentando imitar o método Lulinha Paz e Amor de 2002, só que em 2024, como se o momento da gente fosse o mesmo de 22 anos atrás.
Na pré-campanha de Boulos, todo mundo tinha certeza de que ele ia disparar. Porque, né, era só fazer o que ele fez tão bem.
Não fez.
Boulos deve ir para o segundo turno contra um dos dois aventureiros: o atual prefeito Ricardo Nunes, que ninguém sabe direito quem é; ou Pablo Marçal, que todo mundo sabe exatamente quem é.
Mas, a poucos dias da votação, até essa expectativa tornou-se uma incógnita. O mais recente levantamento do Datafolha mostra Nunes com 27%, Boulos com 25%, Marçal com 21%. Na noite de segunda-feira (30/set), a nova pesquisa da Quaest colocou os três em empate técnico: Nunes 24%, Boulos 23%, Marçal 21%.
Aquela campanha de Boulos em 2020 é comparável a outras duas incríveis campanhas, também entre as melhores do Brasil até hoje: a de Fernando Haddad (PT) em 2012, que o colocou na cadeira de Prefeito de São Paulo; a de Marcelo Freixo (ex-PSOL, hoje PT) à Prefeitura do Rio de Janeiro em 2016; e talvez a do próprio Lula em 1989 e 2002.
Campanhas incríveis nem sempre são campanhas vitoriosas, mas sempre são campanhas que multiplicam o capital político do postulante. O candidato pode até perder, mas o político ganha. E como ganha.
Agora em 2024, a julgar pelas redes sociais de Boulos, parece que ele é candidato a vereador no interior paulista. É tão engraçado que nem os canais oficiais mostram que ele é candidato a prefeito, mas apenas que “vai fazer mais por São Paulo”, seguido das expressões “deputado federal” e “professor”. Ué, vai fazer isso como deputado? Ou professor? Veja o print.
Talvez Boulos acredite que o eleitor paulistano nutra semelhanças com o eleitor sueco ou norueguês, letrados e conscientes politicamente, que acompanham todo o noticiário e leem todos os jornais. No Instagram de Boulos, ainda tacaram o velho emoji do bolo de aniversário na descrição, o trocadalho do bolo de Boulos.
Engraçado é que, geralmente, quem acha que piada de tiozinho do pavê dá voto é o eleitor de extrema-direita e/ou de extrema-alienação.
Boulos não tinha como ganhar a eleição em 2020, mas ele e todo mundo sabia disso, porque era a conjuntura do momento. Primeiro turno ficou com 20,2% dos votos, foi para o segundo turno contra Bruno Covas (PSDB) e saiu com 40,6%. Ganhou um capital político enorme, mas agora dá bolo no eleitor. Covas faleceu de câncer em 2021.
Torço que no segundo turno de 2024 a gente consiga ver um pouco da campanha de 2020.
No outro espectro da evolução das espécies eleitorais, em Recife, Daniel Coelho (PSD) contraiu a mesma cegueira de Boulos, porém invertida: manteve o status quo de uma década, quando a atual conjuntura e o momento do eleitor clamavam por uma novidade no tabuleiro, uma ruptura real.
Ele segue a mesma receita de bolo (kkk, não resisti) que funcionou perfeitamente bem em 2012, mas que há dez anos se mostra cansada para o público que deseja atingir. Na eleição para Prefeito do Recife em 2012, Daniel Coelho já tinha sido vereador duas vezes e era deputado estadual, ou seja, não era mais um neófito. Protagonizou uma das mais arrojadas e criativas campanhas do Brasil.
Perdeu, mas ganhou. E como ganhou.
Tornou-se uma grande surpresa nacional, ao ameaçar a hegemonia do poder dinástico de Eduardo Campos, que havia colocado o então (e ainda) desconhecido Geraldo Júlio como candidato a prefeito. Geraldo ganhou a prefeitura de mãos beijadas, Daniel Coelho ganhou projeção nacional e foi eleito deputado federal. Seu capital político disparou.
Eduardo Campos morreu no acidente aéreo em 2014, mas “deixou eleito” outro desconhecido, naquele mesmo ano, agora na cadeira de Governador de Pernambuco, Paulo Câmara, atualmente presidente do Banco do Nordeste (BNB).
Em 2022, Daniel Coelho não conseguiu ser reeleito para Câmara dos Deputados por causa do quociente eleitoral. Teve voto, mas faltou voto. Aparentemente, sobrou pedra. A estratégia das campanhas dele tem sido exatamente a mesma desde 2012 e se repete em 2024. O mesmo roteiro, as mesmas expressões e tiques, as mesmas provocações que não chegam ao consciente do eleitor de massa. Até os gestos se repetem.
Desta vez, Daniel Coelho tinha a faca e o queijo na mão para fazer uma campanha de ruptura, porque era o único espaço diferente que a conjuntura permitia. Veja bem: o atual Prefeito do Recife, João Campos (PSB-PE), herdeiro-primeiro da dinastia familiar, filho de Eduardo Campos, já somava quase 80% das intenções de voto desde a pré-campanha. Com meses de antecedência. Você vai entrar num embate desse porte falando as mesmas coisas e atirando as mesmas pedras para todos os lados?
A única maneira de lutar contra o fenômeno mirim da capitania hereditária de Pernambuco seria apresentar uma ruptura. Não ia ganhar a eleição contra o predestinado, evidente, mas ia identificar (e talvez recuperar) um público que hoje se encontra ilhado e sem opções. De brinde, ia multiplicar o capital político, uma equação bem mais difícil quando não se tem mandato, como é o caso dele. Uma projeção para 2026 que, convenhamos, sempre foi o objetivo primário (e com razão).
Em 2016, também tentando repetir a campanha de 2012, ficou em terceiro lugar (18,6%) na disputa pela mesma Prefeitura do Recife. Em 2024, em vez de se adaptar, seguiu mantendo o mais do mesmo de 2012, ignorando os atuais paradigmas e dúvidas dos eleitores e até mesmo as mudanças de comportamento que as pessoas passaram a exibir publicamente, dentro e fora das redes sociais. A pesquisa mais recente da Quaest coloca Daniel Coelho em posição de empate bruto com Dani Portela (PSOL-PE) na disputa entre terceiro e quarto lugar: ambos com 3% das intenções de voto, atrás do candidato bolsonarista Gilson Machado (PL) com 11%.
Enquanto isso, sabe quem faz uma das melhores campanhas de 2024? Natália Bonavides (PT-RN), candidata à Prefeitura de Natal, que até o próprio partido achou que seria uma aventura, mesmo ela tendo sido a Deputada Federal mais votada do Rio Grande do Norte em 2022. Pois a aventura foi crescendo organicamente e virando voto, dia após dia. Hoje, Natália aparece com chances de ir para o segundo turno, situação inimaginável dois a três meses atrás.
Se perder, e deve perder a eleição se for para o segundo turno, Natália já ganhou.
Nas ruas e nas redes, você compara as atividades e produções de Natália Bonavides e Boulos, por exemplo, e lado a lado vai parecer que Boulos concorre à eleição de síndico de condomínio.
Nas publicações e exposições de Boulos, o eleitor é quase invisível. Pior ainda, Ricardo Nunes e Pablo Marçal se fazem tão presentes nas postagens e direcionamentos de Boulos que parece até uma coligação.
Nas publicações e exposições de Daniel Coelho, o maior cabo eleitoral parece ser o próprio João Campos. Um dos slogans da campanha de Daniel, repetido exaustivas vezes nos programas do horário eleitoral desde o início, é este aqui:
“esta campanha não é sobre Daniel, é sobre o outro candidato”.
Bom, nisso aí ele parece que tem razão…
Se vivo estivesse, Charles Darwin ia transferir o título eleitoral para o Rio Grande do Norte, comprar um bolo sem açúcar, sem glúten e sem lactose para Guilherme Boulos e fazer uma sopa de pedras para Daniel Coelho.
Sobre a foto em destaque:
Registro aleatório durante um evento de campanha eleitoral.
Agosto 2012 | Canon 6D | 1/125s | f/13 | ISO 200.