Réveillon e as pombas da discórdia

Enquanto o natal exerce o dom de evidenciar o que há de mais hipócrita, demagogo e às vezes incrivelmente falso nas pessoas, a virada de ano parece ter um poder inversamente proporcional. Chega a ser estranho ver algumas pessoas bebendo tanto, após um ano inteiro de sobriedade. É como se o réveillon gerasse um efeito similar ao que ocorre nas mulheres durante as festas de formatura (delas) ou antes de casar: tomam todas até cair, como se o dia de amanhã fosse trazer uma iluminação dos céus. No entanto, engana-se quem pensa que a bebedeira descontrolada do ano-novo atinge apenas os leigos. Não é incomum ver profissionais papudinhos caindo na mesma armadilha.

Justamente por isso, diferentes histórias de réveillon possuem um contexto bem similar. Sempre há bebedeira e constrangimentos. Três causos ilustram bem a semelhança etílica desta época do ano. Veremos uma por dia, até 1 de janeiro.


POMBAS DA DISCÓRDIA –

Nosso colega Cebola é um papudinho que, sóbrio, se mete em enrascadas dignas de pegadinha. Bêbado, então… é melhor sair de perto para não ir bater na delegacia.

Naquela véspera de ano-novo, Cebola recebeu uma convocação extraordinária para comparecer na casa do amigo X, pois durante a tarde haveria uma prévia da festa de réveillon. A idéia era apenas calibrar um pouco, de leve, para que durante a noite todos estivessem no ponto de equilíbrio – nem sóbrios, nem bêbados, apenas no estágio ideal para não se importar com o simbolismo fajuto de “ano novo, vida nova”.

O problema, ou melhor, a solução, é que a prévia estava muito melhor do que o réveillon familiar programado para Cebola. Tinha cerveja gelada, miúdo de galinha, cabidela, pôquer, Reginaldo Rossi e Raul Seixas. O que mais um homem em sã consciência (ou não) poderia querer da vida?

O tempo passou e a hora da virada chegou, mas ninguém queria ir embora. Como voltar para casa naquele estado alcoólico? Todos ficaram – inclusive Regi Rei e Raulzito. Só o danado do Cebola inventou de ir embora.

Como ele chegou em casa, ninguém sabe. Fato é que a esposa já abriu a porta surtando, pois em meia hora o restante da família ia chegar – devidamente fardada com aqueles trajes ridículos de branco, feito um bando de pombas-gira. E Cebola naquela situação deplorável, sem entender o que acontecia ao redor, mas na maior boa vontade do mundo para não decepcionar Dona Encrenca.

A mulher jogou o indefeso vegetal debaixo do chuveiro e lá o abandonou. Vinte minutos depois, teve que arrombar a porta do banheiro porque Cebola não respondia aos pedidos gentis de “vai logo com esse banho, cachaceiro!”, com aquele tom suave e compreensível o qual conhecemos muito bem. Ao adentrar no recinto, viu o marido deitado no chão com a cara virada para cima, a água batendo no rosto. Quase morrendo afogado.

Colocou a criatura para se vestir e, dez minutos depois, estranhou a demora no quarto. É que o pobre Cebola confundiu as roupas e estava colocando o calção e o meião de jogar bola, ambos branquinhos feito a luz, do jeito que a esposa pediu. A raivosa entrou, jogou o meião para longe, vestiu a roupa certa e o despachou para o banheiro, mandando escovar os dentes para disfarçar o bafo de cana e não constranger a família.

A campainha tocou e o coletivo de pombas-gira começou a entrar. A mulher ficou fazendo o social com a família na sala, suando de tanto rezar para que Cebola aparecesse todo engomadinho na porta e com um sorriso falso no rosto. De repente, ouve-se o som de alguém tossindo. A mulher corre para dentro de casa, à procura do vegetal.

Ao entrar no banheiro, vê um Cebola que mais parecia um cão raivoso. Ele confundiu os tubos e estava escovando os dentes com o creme de barbear, sem entender o por quê de tanta espuma no rosto, já que tinha usado tão pouca pasta de dente. Foi quando a mulher desistiu e jogou nosso amigo na cama para dormir. Chapado e feliz, dormiu feito um anjinho.

Até hoje a mulher do Cebola se arrepende de não ter ido à prévia do réveillon na casa do amigo X, que também a convidara. Naquela virada de ano, ela finalmente entendeu o que um dos amigos do marido, um baixinho ranzinza e redondo que ela detestava, costumava dizer: dias são apenas números que se repetem. Você os faz ou eles fazem você.