Reminiscência apoquentadora

Paulo Rebêlo // nov.2000

Há um momento em que as pessoas parecem cansar de si mesmas. Do cotidiano, da família, do relacionamento. Cansam daquele jeito de ser. Uma espécie de fadiga psicométrica cujas conseqüências refletirão diretamente no dia-a-dia. Quando o nosso termômetro não mais consegue nivelar nossas frustrações, parece ocorrer uma explosão interna e então resolvemos mudar. Mudanças podem ser frutos de resoluções singelas, pouco significativas; ou traumáticas, desesperadoras. Singelas como um corte de cabelo, uma roupa diferente. Traumáticas como uma separação, uma perda involuntária de alguém por quem se acredita nutrir um sentimento de vigor imensurável.


Muda-se apenas o arcabouço, mas o interior permanece intacto. Hipoteticamente, na ocasião de a força de vontade de um indivíduo se tornar, por si só, um medidor eficiente de mudanças, as pessoas haveriam de estar em constante mutação sempre que assim o desejassem. Um prisma longe da realidade, frente à relativa fraqueza da força de vontade sozinha.

Pessoas não mudam. Não no contexto em que elas gostariam de mudar; que nós gostaríamos. Admitamos que, no fundo, nem sempre queremos mudar. Queremos, isso sim, apenas esquecer. Simplesmente, esquecer. Afinal, nenhuma força é maior do que os nossos próprios fantasmas, pois a consciência parece ser imexível. A subconsciência, imutável.

Em detrimento de certos remanescentes da memória, pessoas simplesmente não mudam. Parecem achar que o fazem, mas são perseguidas em instância impetuosa pelas próprias lembranças de outrora, pelas recordações de uma época inestante.

Como fantasmas, certas lembranças perpetuam nossas vidas sem tréguas. Reminiscências que, de modo geral, pairam sob nossas mentes em datas ou situações específicas. Um aniversário, uma música, uma época do ano, um feriado, um local. Aquela pizzaria, aquele restaurante, aquela árvore, aquele livro, aquele presente, aquele quarto, aquele pijama… lapsos de memória que, nessas ocasiões, fazem aflorar um rol de recordações plangentes.

Bom (ótimo) seria se tais reminiscências expusessem o seu clamor somente em datas ou situações bem definidas. Aquelas as quais temos conhecimento. Destarte, haveríamos de possuir um mínimo controle sobre elas, de poder nos preparar psicologicamente, de termos uma ínfima defesa contra as recordações que nos afligem, que nos fazem querer voltar a um inestendível tempo.

Que nos fazem reviver aqueles momentos, sentir novamente aquele cheiro, aquele sabor. Tocar aquela pele. Começar tudo de novo e não permitir que cometamos os mesmos erros, não transparecermos à mesma omissão, o mesmo descaso. Não incitar motivos para aquela pessoa partir. Não permitir que ela suma de nossa vida como a água que esvaece ao deslizar sob córregos. Poder mudar o resultado.

Onipresentes, essas lembranças sobejam nosso consciente e permeiam nossa mente, por mais que tentemos mudar. Por mais que achemos poder mudar. Julgamos, consideramos e até conseguimos trocar de emprego; deixar a família; morar em outra cidade; promover um auto-exílio voluntário; dar início a uma nova vida, “longe” do passado.

Em nossa impérvia teimosa (ou ingenuidade), achamos que obteremos resultado. Silenciosamente, imploramos às lembranças que não mais nos atormentem, que desapareçam. Induzimos que apenas pelo fato de realizar determinadas atitudes, haveríamos de nos ver livres das incansáveis e lancinantes reminiscências.

Árduo engano.

Não mais voltar àquele local; não mais retornar àquela cidade; não mais usar aquela roupa, aquele pijama; queimar todas aquelas cartas…

Atitudes cujos efeitos nada amenizam a mordacidade chamada recordação e o leviatã chamado sentimento.

Onímodas, as lembranças parecem não optar por locações ou por datas específicas como gostaríamos. Quando menos se espera, muitas vezes a achar que estamos “curados”, a salvos da corrosiva mágoa de querer regressar e corrigir o passado, elas aparecem. Sem motivos aparentes, ressurgem e nos fazem acordar no meio da noite, atônitos, pasmos; as idéias confusas, os nervos à flor da pele.

Os sentimentos, em polvorosa.

Nos fazem olhar para o lado da cama e, ao observar o vazio, formular incontáveis motivos para fazer com que aquela pessoa retorne aos seus braços, se deite naquele espaço que parece ter sido feito sob encomenda. Ao mesmo tempo, não conseguir imaginar sequer um motivo plausível que seja responsável pelo fim daquela tenra época.

Por mais que tentemos, é impossível resistir à tentação de visualizar a imagem daquela pessoa ali pertinho, com aquele cheiro característico que parece estar impregnado às narinas, aquela respiração que parece estar rente ao pescoço.

Sensações aflitivas, independentes de quão distante esta pessoa esteja. Independente de você ruminar sobre onde ou com quem ela esteja.

Cogitar se ela está sozinha. Se está sem rumo. Se está incólume. Ou se alguém a está amando.

Como uma doença incurável, as lembranças terminam a nos direcionar para uma saída, uma única saída: aprender a conviver com elas. Externamente, aprender a seguir em frente em um pérfido convívio harmonioso.

Puro fingimento.

Internamente, o “aprender a conviver” nada mais significa do que aprender a repousar a convulsão que parece querer explodir a qualquer instante. Um soluço, um choro de clamor. Uma vontade de voltar no tempo.

Uma súplica, como quem diz: “volte, eu estou aqui”.

Uma humilde constatação de que, impassível e acataléptico, estou e continuo aqui. Um enérgico testemunho de que continuarei aqui; até o dia em que cessem as lembranças e reduzam às cinzas os sentimentos.

Mas até quando? Eis a inseparável dúvida.

Neste dia em que cessem as lembranças e em cinzas se transformem os sentimentos, uma dolorosa reminiscência apoquentadora contida na lembrança daquele rosto, daquele cheiro e daquele toque, poderá ser o dia em que não mais traga consigo um significado. Um sentimento.

E neste dia não mais haverá memória; não mais haverá recordação. Neste dia, as reminiscências serão dispersadas. Neste dia, nada mais haverá para se recordar. Nada mais precisará ser recordado.