Paulo Rebêlo // junho.2003
A rotina é conhecida, resultado de freqüentes noites insones em que o olho simplesmente não quer fechar, nem com esparadrapo. Cinco horas da manhã. Com todas as cortinas do cafofo fechadas e todas as luzes apagadas, em uma pueril tentativa de enganar o próprio inconsciente, ainda tento acreditar que é noite, que conseguirei dormir algumas poucas horas antes de o mundo começar a girar.
Ledo engano. Eu havia esquecido do fator galo. Como sempre, o galo. O maldito galo da vizinha. Aquele pusilânime sempre inventa de cantar por volta das quatro ou cinco horas da manhã, avisando que em mais um pouco o sol começa a raiar. E o danado parece que está colado com a janela, de tão próximo que o som chega. O problema é que, além dela mesma, aquela bruxa da vizinha não tem galinhas no quintal. Ao menos, a vizinhança nunca viu, pois fiz questão de perguntar. Então, por que criar um galo esquizofrênico que atrapalha a vida de todos os insones?
Foi então que, em uma certa manhã pós-insônia, coloquei uma roupa que não estivesse amassada como de costume e inventei que era agrônomo. Fui lá na casa da alma sebosa, inventei uma história e pedi para recolher amostras de terra do quintal da bruxa. Casa grande, porém simples, humilde. No quintal, uma garagem com uma Brasília azulzinha, cheia de ferrugem. Bagulhos espalhados, ferro-velho, plantas, vasos, bacias e até um vira-lata dormindo. Parecia a casa onde morei quando era guri na floresta.
Mas, com exceção da própria vizinha, não havia nenhuma outra galinha. Nada de galinhas. Sequer ninhos ou ovos. Oras, como um quintal sem galinha pode ter um galo que canta? Vai contra a natureza animal, não tem lógica. Presumi que não deveria haver galo algum, talvez eu estivesse no lugar errado, confundindo tudo, viajando na batatinha.
Na condição de agrônomo estudioso, eu estava para me retirar do quintal mais aliviado, pois não precisaria cometer nenhum crime contra o meio ambiente, como havia planejado até então. E foi nesse exato momento de alívio e satisfação que ele passou. Ele, o anhangá tinhoso, o carcará dos infernos, o capacho de belzebu. O galo. Aquele frango do galo que não tem respeito à insônia dos outros. Em plena rua domiciliar no centro da cidade, um abuso.
E foi em uma luzida reflexão nissin-miojo (instantânea) que tive a brilhante idéia: cortar a cabeça do galo. Decepá-lo. Empalá-lo. Cozinhá-lo. Trucidá-lo. Tudo ao mesmo tempo.
Naquele momento, todas as mazelas da insônia sumiram e aquele [meu] corpo pequeno e redondo foi invadido por uma extasiante alegria. Um sorriso angelical estava agora estampado no rosto da maior vítima dessa história toda: eu.
Infelizmente, um resto de mazela da insônia ainda estava presente, impedindo-me de elaborar uma eficiente estratégia, um plano de ataque certeiro, rápido e mortal. Sem uma faca ou serra elétrica por ali, não havia como cortar a cabeça daquela criatura do mal somente com as mãos nuas.
Pedir à bruxa uma peixeira emprestada estava fora de cogitação, pois nesse intervalo o apadrinhado de satã poderia se esconder ou, pior ainda, poderia sair do quintal e ir para frente da casa, proteger-se perto da dona. Caso isso acontecesse, minha boa ação para com a humanidade teria de ser adiada. Mas, a idéia da peixeira não era de tão mal assim. Afinal, uma única peixeirada seria o suficiente para partir aquele belzebu-mirim em dois. Ou em três. Ou em asterisco. E depois sair correndo, foragido.
Não. A boa ação tinha de ser feita naquele momento. Ali estavam, como em um duelo de samurais, os dois guerreiros em olhares enviesados. Eu, de cabelo assanhado, sem banho, fedendo, grudento, banhudo e com aquele bafo de ressaca, mas com sede de sangue, representava o lado do bem. O galo belzebu, contudo, não representava o mal — pois o mal é muito pouco. O capeta de penas representava a soma de todas as sogras do mundo elevada ao quadrado. Ao cubo. À décima-quinta potência. Imagine um navio de carga com todas as sogras e todas as mulheres surtadas do mundo: era ele. O apocalipse.
Sem armas, bastava um ínfimo movimento brusco de qualquer um dos dois guerreiros para que o duelo tivesse início. Respiração ofegante, olhares atentos. O galo certamente tomaria a iniciativa, pois já deveria ter percebido que estava a um passo da outra vida. E foi ao pensar nessa iniciativa esotérica que eu broxei e desisti do assassinato.
A memória apitou, lembrei-me do filme Rocky II (1979), em que Stallone corre, corre e corre, e não consegue pegar uma galinha com os mãos durante um treinamento físico. Em uma rápida comparação entre Stallone e a minha pessoa, conclui que somos ligeiramente diferentes.
Logo, imaginei uma cena hipotética: correndo atrás do galo para esganá-lo ao redor do quintal, pegando um pedaço de ferro-velho solto por ali, tacando no galo e só acertando o chão, enquanto à bruxa escuta o barulho e vem correndo, gritando, tentando socorrer o maldito galo das garras de um bom samaritano.
A essas alturas, certamente toda a vizinhança teria acordado, o povo estaria nos terraços olhando a cena de combate, o espetáculo guerreiro. Todos gritando, batendo palmas, incentivando, jogando confetes, dando apoio moral e, em uníssono, minhas vizinhas suburbanas peitudas estariam gritando da janela: “baixinho gostoso, gordinho sexy, mata esse capeta, mata!!!! Esfola o belzebu e depois sobe aqui em casa para um brinde!!!!! Mata ele, meu carequinha lindo!!!”
De olhos fechados imaginando meu momento de glória com as suburbanas, acordei daquele transe e voltei à realidade: nessas horas, quem sempre vai preso é o ladrão de galinhas, nunca o verdadeiro culpado. Imaginei-me sendo levado pelo camburão da PM, com a dona do galo pagando propina aos policiais para fazerem do agrônomo uma galinha, e mais na frente, lá estaria eu contando meu drama no programa do Cardinot, no Cidade Alerta, explicando a verdadeira versão dos fatos, falando sobre as constantes ameaças de morte da Associação dos Protetores de Galos Pirados e dos Adoradores de Satã.
E ali se acabou aquele duelo de titãs que sequer chegara a ter início. Um justo empate, eu diria. Ao baixar os ombros e desfazer a posição de guerra, o então agrônomo disfarçado retira-se do ambiente prometendo: I’ll be back. Ao passar pelo portão, a bruxa pergunta se deu tudo certo na recolha das amostras de terra para minha pesquisa, meio curiosa com o quê um agrônomo estaria fazendo às 6h da manhã no centro da cidade. Retruquei:
— Por obséquio, a senhora costuma acordar a que horas?
— Umas quatro ou cinco da manhã. O Tião me acorda.
— Bem cedo, né? Tião? Seu marido?
— Não, Tião é o meu xodó, meu fofinho, aquele galo lindo que estava ali no quintal. Você não viu? Ele é um santo! Nunca perde a hora!
— E, é? Não diga.