Como escrever uma crônica – I

Paulo Rebêlo // abril.2004

Escrever poderia ser um negócio bem mais fácil. Bastava não ter alguém do outro lado para ler. Quase todas as crônicas são escritas durante o fim de semana. Tudo por conta de uma hipocrisia super ranzinza de que, durante a semana, não se deve perder tempo produtivo de trabalho com abobrinhas.


:: SEXTA-FEIRA ::

Ao sair para tomar uns aperitivos, as idéias começam a aflorar. No desenrolar da biritagem, vez ou outra vem o pensamento: `perereca, isso dá uma crônica!’ Esse processo também acontece nas segundas, terças, quartas e quintas-feiras. A diferença é que somente na sexta eu juro que vou lembrar de tudo no sábado.

Eventualmente, carrego no bolso um bloco de notas. Afinal, nunca sabemos quando alguém vai levar um tiro no meio da rua – é a oportunidade de um jornalista ir perguntar ao familiar que presenciou tudo: “como a senhora está se sentindo?”

Quando estou sozinho no templo, digo, no bar, para não pagar mico, rabisco rapidamente alguma coisa usando palavras-chaves matemáticas do tipo:

cerveja + mulher bonita = retribuição dos céus.
cerveja + mulher feia = acumular crédito no céu.
mulher feia sem cerveja = missão de deus.
cerveja + cerveja = nirvana.

E assim por diante. O problema é, de novo, jurar que vou lembrar no sábado pela manhã o que diabo significam as palavras-chaves. Isto quando consigo entender aqueles rabiscos todos manchados, pois é comum eu esquecer o bloco em cima da mesa e aí molha tudo.

:: SÁBADO DO ESQUECIMENTO ::

Sábado de manhã, ressaca, dor de cabeça, gastrite e chicotinho. A geladeira, de tão vazia, parece que faz eco. O Super Ranzinza senta à frente do computador para escrever, mas não lembra de absolutamente nada das filosofias do dia anterior. Não faz mal: ‘hoje estou inspirado’.

Surge a síndrome da folha em branco. É quando você fica com o olhão grudado na tela branca do Word, toda limpinha, achando que está inspirado, porém não consegue digitar sequer um parágrafo interessante.

A tela branca fica ali parada por uma, duas horas. É o tempo em que você fica brincando com o computador, esperando que a crônica caia do céu. Abre e-mail, entra em algum site, abre MSN, faz download, fecha MSN, vê o tempo passar. Fecha o Word. Acha que vai escrever melhor depois que se distrair com algum joguinho.

Entra no jogo, mata terroristas e alienígenas. Abre o Word. Vê a folha em branco. Lembra que tem matéria atrasada para entregar e que devia estar trabalhando em vez de cronicando. Passa do meio-dia.

Consegue rabiscar algo. Às vezes, uma página inteira ou duas. Fica uma porcaria. Fecha o Word. Hora do almoço, precisa comer algo. Na cozinha, acabaram até as tradicionais latas de sardinha. O pão está tão mofado que parece o alienígena do jogo! Ah, tem nissin-miojo, mas não tem gás para ferver a água.

Volta para o computador. Abre o Word. Podia chamar alguém para almoçar fora, trocar umas idéias. Melhor chamar uma amiga. Pois, se chamar um amigo, o almoço pode virar cervejada.

Fecha o Word. Telefona para algumas amigas. Não aceitam porque acham que é cantada. Você insiste que só quer almoçar. Elas respondem: “qualé, eu leio suas crônicas!”.

:: SESSÃO DA TARDE ::

Almoça qualquer bagulho na rua. Come rápido para voltar logo, pensando no texto. Não faz nem questão da terceira Malzebier. Chega em casa. Pega a terceira Malzebier. Abre o Word. Começa a escrever. Pára na metade, lembrou de um assunto melhor, mais engraçado.

A tarde só está começando e ainda tem pela frente mais da metade do final de semana. Melhor esfriar a cabeça um pouco. Tenta ler o jornal. Bate o sono. Não, não pode dormir, se não vai terminar deixando a crônica para outro dia e nunca termina!

Fecha o Word. Cavalo de três patas não anda, pega a quarta Malzebier. Coloca um filme para assistir. Dorme na metade.

Acorda duas horas depois. Ainda faz sol. Abre o Word. Você bem que tentou, mas não conseguiu. Voltou a lembrar de uma fofinha em especial, que até agora não deu sinal de vida e o sábado já vai acabar. Ela poderia estar aqui agora, mas é muito estranha, você não a entende. Entra em desespero ao notar que está fazendo papel de otário pensando que ela é estranha, quando na verdade o estranho é você em não aceitar que ela está lhe despachando.

Morgou geral. Um cineminha seria ótimo para espairecer. Mas você lembra que cinema no final de semana é monopólio de casais se beiçando. Desiste. Pensa em chamar a irmã. Lembra que ir a cinema com irmã é atestado oficial de incompetência. Fica com a consciência pesada de achar isso. Mas ela também deve pensar o mesmo, então está tudo bem. Recorda a crônica “Cinema Sem Compromissos” * e fica puto da vida.

Desiste da crônica. Melhor trabalhar, só assim consegue saldar os fiados no bar e as contas atrasadas. Abre o Word. Trabalha um pouco. Fica puto da vida novamente. Já prometeu a si mesmo que, trabalhar final de semana, nunca mais. Fazer o quê, é o jeito. Se vaca voasse, chovia leite.

E a noite está apenas começando.