Paulo Rebêlo
NE10 | 10.dez.2015 | link
Outro dia, vi duas crianças discutindo o futuro delas como profissionais. Uma queria ser desenhista, outra queria ser médica. Fiquei em choque. Quando eu era guri, queria ser jogador de futebol; igual à maioria dos meninos. Só queria jogar bola.
Depois, adolescente, mantive o interesse; porém, com outros objetivos. Percebi que os meninos que jogavam bem tinham sempre mais atenção das meninas mais bonitas. Na rua, no colégio, na praia e até debaixo do viaduto.
E quem era perna de pau, feito eu, não tinha atenção nem das feias.
Futebol é algo que você é obrigado a nascer sabendo. Ninguém precisa ser o novo Zico, mas ser perna de pau é quase como ser o leproso da época de Jesus.
E eu era um leproso em estágio avançado e incurável. Daqueles que o dono da bola prefere jogar com uma pessoa a menos do que me botar no time dele. A desvantagem era menor.
Pensando no meu futuro profissional, comecei a matar aula para me enfiar dentro de favela e campinhos de várzea. A lógica era simples. No colégio, se você não jogava bem, era apenas ignorado. Depois passava e as pessoas voltavam a falar com você. Ao menos até o próximo jogo.
Mas, na rua, você apanha de verdade quando não joga direito. Não tem mimimi, Temer.
Também era preciso esconder as perebas e os dedos esfolados. Resultado direto de pedregulhos e cacos de vidro debaixo do pé, das cotoveladas, rasteiras e eventuais tapas no pé da orelha.
Debaixo de quase todos os viadutos do Recife, não havia nada além de um espaço abandonado que servia de residência para muitas famílias. Às vezes, sobrava um descampado. Sempre tinha gente jogando.
É quando você aprende a não levar rasteira nem d’um trem.
Porque, se você está em pé e com a bola, você esfola apenas os dedos e a planta do pé. E está ótimo assim. Mas, se você perde a bola porque é ruim, você leva uma rasteira e esfola o corpo todo.
Ali onde hoje fica o pomposo Shopping RioMar, tinha um descampado onde aprendi que a gente só é cristão quando não atrapalha o jogo.
Um dia, chegamos no domingo de manhã e havia um defunto por trás do gol. Tive a genial ideia de procurar um orelhão e ligar para a polícia, porque queríamos jogar e ficamos com medo daquele presunto ali.
A ideia era que a polícia levasse o presunto, investigasse o crime e capturasse o assassino igual ao Dirty Harry de 1976 que eu tinha visto no videocassete importado de uma das meninas feias que agora dava bola para mim…
Mas os caras chegaram e mandaram a gente embora, fecharam a grade e perdemos o mando de campo naquele domingo. Ainda levei umas bofetadas.
Quando apareceu outro presunto, a gente ligou para a polícia só quando o jogo terminou. E ninguém ficou para esperar.
No terceiro defunto em diante, infelizmente não existia celular na época, porque acho que a gente ia tirar uma selfie com ele. Já era de casa. E assim foi mais presunto do que açougue de interior. Até fecharem o campo de vez.
Abri mão de ser jogador (e de me dar bem com as meninas) quando participei de um desses campeonatos juvenis interclubes.
Tinha bola oficial, uniformes, patrocinadores e olheiros dos “grandes” clubes: Sport, Náutico e Santa Cruz. Vi toda aquela gurizada se matando para realizar um sonho de vida.
Que tinha sido o meu sonho também. Até eu perceber que os olhos deles brilhavam de esperança enquanto o meu se apagava de culpa.
Tudo que eu queria era apenas me dar bem com as meninas.
E, de repente, eu estava ali com a bola nos pés. Se eu perdesse um gol, não jogasse bem ou tivesse uma dor de barriga, estaria atrapalhando a vida daqueles guris com o mesmo colete do meu. Ou talvez ajudando o sonho daqueles com o colete diferente. Quem merecia mais?
Eu até hoje não sei. Só sabia que era responsabilidade demais por causa de uns sarrinhos. Fingi uma contusão, pedi para sair de campo, entreguei a braçadeira para o “técnico” e me fui. Nunca mais olhei para trás.
Em compensação, anos depois quando fui participar do futebol na firma, notei que novamente eu atrapalhava menos se ficasse fora de campo do que dentro.
Cada um com suas bolas.