A noite da centolla

Paulo Rebêlo | out.2009


Conheci um portenho e ele disse: se você realmente vai até Ushuaia, experimente a centolla. É uma iguaria típica daquela região de Tierra del Fuego e ali é o melhor lugar do mundo para comê-la.

Nunca ouvi falar em centolla. Achava que conhecia um pouco de mundo, mas cá estava eu sem fazer a menor idéia que bicho era aquele e onde eu poderia encontrá-lo.

Senti-me um verdadeiro mentecapto. E assim fui arrumando a heróica mochila de seis quilos. Já não pensava mais em nada. Perdi meus supostos interesses de conseguir pisar em Ushuaia: atravessar o Estreito de Magalhães, pedalar ao lado da Cordilheira dos Andes, navegar pelo Canal Beagle, ver de perto o falso Farol do Fim do Mundo que Júlio Verne tanto escreveu e, claro, cumprimentar de perto meus primos pinguins.

Tudo se tornou supérfluo. Porque agora eu só pensava na centolla.

Sim, eu poderia ter entrado no Google para decifrar o mistério. Mas tiraria toda a graça da descoberta. Verdade, nunca gostei de surpresas, mas também verdade que sempre gostei de descobertas inusitadas.

Não foi difícil achar a centolla logo no primeiro dia. Quase meia-noite, piso pela primeira vez em solo fueguino e tive sorte pelo tempo não estar tão frio para a região. No aeroporto disseram 5 graus. Subi os três andares de escada daquela espelunca onde me hospedei, joguei minhas tralhas pesadas na cama e fui à caça da centolla.

De ignóbil mentecapto, agora eu me sentia uma versão extra-fofa do verdadeiro Indiana Jones indo comer cérebro de macaco no templo da perdição.

O rapaz do hotel indicou o restaurante próximo ao Canal Beagle, por ser especializado em centollas. Caminhe quinze quadras ao sul e você vai encontrar, diz o arataca. Fácil, nem precisou de mapa.

Quinze quadras ao sul estou. Precisam de uma consultoria de marketing. E de mais espaço. Não tinha mesa para mim. Quem chega até aqui não se importa de esperar um pouco. Na caixa de som tocava o mela-zorba do canadense Bryan Adams em ritmo estridente. E eu achando que os argentinos eram bairristas.

Não entendi ao certo, mas só havia casal em pleno meio da semana numa cidade que é conhecida por ser o último reduto habitacional ao sul do planeta. Do Ushuaia para baixo, há apenas pequenos vilarejos, depois é a Passagem de Drake e 1000 km adiante está a Antártica. Infelizmente não a cerveja.

Entre uma escala congelada e outra, me perdi no tempo e havia trocado as bolas de neve. Era sábado à noite.

Esperei quarenta minutos. Em pé. Não reclamei, lá dentro estava quentinho, nem precisava de casaco. Meu conhecimento de causa reduzido não permitiu verificar o que poderia vir a ser uma centolla nos pratos alheios.

Uma mulher linda de avental preto se aproxima e finalmente me conduz até a mesa, onde esperei por mais quarenta minutos até alguém se dar conta que nem cardápio eu tinha. Ela bem que poderia ser uma centolla.

Fiquei literalmente espremido entre duas mesas com dois casais. Privacidade zero. Para os cinco. Eu só queria uma centolla e, naquele exato momento, poderia vir embrulhada num saco plástico para levar até o hotel e comer na escadaria.

A linda garçonete de avental preto não chegava, meus sinais com a mão de nada adiantavam e os inúmeros casais ao redor ficavam olhando para mim como se eu fosse uma centolla com Mal de Parkinson.

Aliviei a tensão pensando ser aquilo o preço a se pagar por poder desfrutar de iguaria tão ímpar feito uma centolla austral.

Quando a garçonete enfim aproximou-se, pude observá-la melhor e comprovar que o frio realmente deve fazer muito bem às mulheres. Pedi uma cerveja artesanal patagônica chamada Beagle, a qual para minha surpresa chegou muito rápido. As coisas enfim estava melhorando, agora só me restava escolher entre as oito opções de centolla descritas no cardápio.

Aparentemente, a centolla mais barata iria me custar os olhos da cara. A centolla mais cara eu não teria coragem de pedir nem vendendo a senhora minha mãe pelo crediário das Casas Bahia.

Procurei desenhos ou fotos de centollas no cardápio, mas não havia nada.

Pedi minha tão sonhada e aguardada centolla e a segunda cerveja. Depois a terceira cerveja. A quarta. Quinta. Na sexta cerveja, eu já não encontrava mais a garçonete com os olhos e desconfiei que a centolla devia ter fugido do quintal do restaurante e estavam a procura de outra. Isto é, não sei se guardam centollas vivas ou mortas ou congeladas. Não sei nem se o bicho tem penas e voa? Só sei que fugiram com minha centolla. E quase todo mundo já estava indo embora, beirava 2h da manhã e eu desde 23h ali plantado feito uma cenoura.

Quando a garçonete enfim chegou, achei aquela criatura tão linda que toda a raiva passou como um passe de centolla, digo, de mágica. Com aquela voz em castellano ela pede desculpas pela demora, explica alguma coisa que eu não faço a menor idéia do alto do meu raquítico portunhol e, voilá, cá está minha centolla fumaçando à frente.

Procurei o prato, mas só encontrei fumaça. À frente havia apenas uma minúscula caçamba, uma caçambinha, quase do tamanho de um pires fundo, contendo uma espécie de ensopado que me lembrou a canja de galinha de parte da minha infância em Alenquer — outro fim do mundo, porém encravado na Região Amazônica.

Não sei falar espanhol e meu raquítico portunhol é um desastre, mas quando pedi a centolla eu ainda estava perfeitamente sóbrio e tenho certeza que pronunciei CENTOJA corretamente, porque passei a viagem toda treinando CENTOJA para não fazer feio e conseguir me fazer entender no castellano portenho. Nem que fosse esta única palavra.

Tenho certeza que pedi uma centoja e não uma amostra grátis de ensopado de caranguejo, mas ali naquele pires só tinha um caldo, umas ervas tipo vinagrete e uns pedaços de patola de caranguejo – que por sinal é um bicho que nunca vi graça e nem gosto.

Decifrado o mistério do que os americanos chamam de King Crab, devo ter levado pouco mais de quatro minutos para comer todos os pedaços daquele caranguejo gigante e raspar o prato, digo, o pires fundo.

Precisei conter toda minha fúria austral quando a centolla humana trouxe a conta sem eu pedir, porque aparentemente restavam apenas nós naquela pocilga mela-zorba especializada em aranhas-do-mar, vulgo caranguejos de águas geladas, vulgo King Crab, vulgo um caranguejo que toma bomba. Se eu fosse menos abestalhado, teria seguido o conselho de falar inglês em Buenos Aires e alguém me explicaria que centolla era King Crab. Gente tapada nasceu para levar fumo, eu sei.

Pensei na Cordilheira dos Andes e nos meus primos pinguins ali no Canal Beagle, paguei a conta me dando por satisfeito, pelo menos eu voltaria ao hotel com a temperatura amena de quando cheguei e poderia economizar no almoço e jantar dos próximos sete dias para compensar o preço da centolla. Também fiquei feliz porque era sábado de madrugada e no caminho até o hotel talvez houvessem ushuaianas de vestidos longos e cabelos vermelhos andando pela rua.

Mas quando botei minhas patas para fora do restaurante, pude jurar ter sentido todos os meus dedinhos do pé congelarem. Desisti de voltar olhando para as Xenas do pólo sul, a centolla-garçonete diz que vai me pedir um táxi local, retorna em seguida dizendo que a esta hora pode demorar.

Na rua não tem sequer uma gaivota e só para pagar minha extensa burrice centolliana resolvo voltar andando para o hotel em peregrinação.

Agora são quinze quadras ao norte, meio trôpego da cerveja, meio injuriado da centolla, meio inerte da beleza da garçonete, mas tudo isso só pude observar e refletir muito depois, porque naquele momento eu não sentia sequer os meus dedos gordinhos. Eu tentava andar, mas o vento gelado me empurrava para trás e devo ter levado 20 minutos para atravessar uma única quadra.

Foi quando reparei que eu estava andando de lado igualzinho a uma centolla gorda.

Entre uma quadra e outra, a rajada de vento praticamente me empurrava e agradeci a mim mesmo por ser pançudo, pois de outro modo talvez saísse voando dali em direção ao mar ou ao reino das centollas no pólo sul.

Cada passo se transformou numa batalha, meu nariz transformou-se num freezer e fiquei com vontade de tirar uma catota para ver se ia sair neve, mas não conseguia sequer tirar minhas mãos do bolso do casaco com medo que os dedinhos virassem picolé de gordura com unhas roídas.

Quando completei cinco quadras, era algo em torno de 3h da manhã e a rua principal da cidade continuava deserta, não havia uma alma viva – e se houvesse eu provavelmente não enxergaria, porque meus olhos de mongol mal conseguiam se abrir, não sei se exatamente pelo álcool ou pelo vento gelado.

Entre uma quadra e outra havia um vão enorme das pequenas ruas transversais de Ushuaia e era preciso correr por causa da rajada de vento congelante. E assim fui bufando, bufando, bufando, até que me perdi nas contas, não sabia mais em que quadra estava e o hotel tinha virado lenda.

A cada passo, eu só pensava na maldita centolla, quer dizer, na nota preta que gastei para comer patola de caranguejo insossa com vinagrete. Foi quando percebi que estava por trás do hotel, numa rua errada e logo ali naquela esquina vi um desenho de um caranguejo gigante – uma centolla – tipo a 30 metros do hotel, bem ali ao lado, era só ter virado na primeira rua.

Naquele fim de mundo, se eu matasse o recepcionista do hotel com minhas próprias patas talvez ninguém ficasse sabendo, mas novamente contive minha fúria, contei de um até dez, depois de um até o infinito que nem Chuck Norris contaria. Subi a escadaria bufando e grunhindo, os três andares, degrau por degrau, sem fôlego até para bufar.

Desabei na cama do jeito que estava e depois disso a última coisa que lembro é de ter tido a sensação de acordar com um cosquinha na minha barba, abro os olhos vagarosamente e vejo aquela garçonete de avental preto à meia luz, ela se aproxima e consigo ver de perto aquela pele branquinha, macia, cheirosa.

Ela cochicha algo no meu ouvido em castellano que só para variar eu não faço a menor idéia do que seja, não sei como ela conseguiu entrar no meu quarto, mas não vai fazer diferença alguma, eu encosto meu corpo no dela e o quarto vira um microondas, nada mais importa, o avental preto já vôou longe, o sutiã dela cai pelo meu rosto, mas quando eu levanto meu rosto em busca daqueles seios perfeitos dou de cara com duas patolas gigantes de centolla viva apontando para mim.

Acordo gritanto pela senhora minha mãe e prometendo nunca mais pensar em vendê-la no crediário das Casas Bahia. Pelos próximos sete dias comi sanduíche frio de rosbife e não dormi direito com medo de sonhar novamente com seios mutantes que viram patolas de caranguejo gigante.


Foto em destaque:
Ushuaia, Terra do Fogo, Argentina.
Setembro 2009
Nikon D90 | 1/800s | f/7.1 | ISO 200 | 105mm

6 Comments A noite da centolla

  1. Maria José Hansen

    Olá, Rapaz!

    Legal ler textos seus novamente… depois do texto da pilula tive dois garotos LINDOOOOSSS e a vida passaou a ficar muito busy aqui em Oslo.

    Abracão e boa sorte!

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  2. Manuca de Paula

    ri de chorar! kkkkkkkkkkkkkkkkk
    tô indo pra lá em novembro, e já estou me convencendo a desistir da tal “centolla alucinógena”
    cá fico eu no Recife a comer caranguejos e guaiamuns, que faço melhor negócio! hehehe
    abraços!

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