Manari, onde IDH é baixo e água vale ouro

Em Pernambuco, cidade de menor Desenvolvimento Humano do país tem renda per capita de R$ 30 e esperança de vida de 57 anos

Paulo Rebêlo
Revista Carta Capital / PNUD
* fotos: João Carlos Mazella
03 de abril de 2004

Manari, no sertão de Pernambuco, assusta pelos números. Segundo a classificação do PNUD, o município tem o menor IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do Brasil. A renda per capita média de R$ 30,43 mensais só não é inferior, entre 5.507 municípios do país, à da recordista Centro do Guilherme, no Maranhão, com R$ 28,38. Na prática, quase não existem fontes primárias de renda. A maior parte da população de 13 mil habitantes sobrevive, principalmente, de três recursos: lavoura de subsistência, assistência governamental e aposentadorias.

Com uma base econômica que sequer pode ser chamada de incipiente, é de se espantar como um único município consegue agregar tantos contrastes ao mesmo tempo. Afinal, a falta de renda em Manari é compensada pelas sobras de dedicação, companheirismo e um inexplicável carinho por aquele pedaço de terra a poucos quilômetros da divisa com o Estado de Alagoas, no miolo de uma região de difícil acesso, sem estradas e sem água encanada.

Manari foi desmembrada do município de Inajá somente em 1997, após atender aos requisitos oficiais para ser emancipada. O nome da cidade é um anagrama de Mariana, que é como se chamava o povoado antes da emancipação. Partiu-se do princípio de que, ao se transformar em município, o vilarejo pudesse se desenvolver mais e, ao mesmo tempo, conseguir acesso mais fácil aos programas sociais do Governo Federal — PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), Fome Zero, Bolsa Escola etc.

Enquanto a chuva não vem

Todos os dias, entre 4h30 e 5h da manhã, os homens que conseguem trabalho na roça saem da cidade para a lavoura, enquanto mulheres e crianças caminham até um ponto mais afastado da cidade com baldes e garrafas vazias. O destino é a única grande cisterna disponível, construída com recursos municipais, na qual os moradores conseguem um pouco de água para atender as necessidades mais básicas. Quando chove, outra alternativa é o açude vizinho.

Não há água encanada em Manari. “Quem tem sorte de conseguir juntar um dinheiro, manda construir um poço em casa e pagar por um carro-pipa quando a situação aperta e as chuvas não chegam”, lamenta Rosemário Henrique de Sá, mas que todo mundo só conhece pelo apelido de Moça.

Dona Moça é proprietária do Hotel São Jorge, a principal de duas pousadas existentes em Manari — a outra é um dormitório minúsculo no único posto de gasolina, na saída da cidade. Há seis anos com o estabelecimento e ainda com a ajuda do marido, que trabalha na roça, ela garante (nos meses de sorte) conseguir tirar no máximo R$ 50 depois de pagar as contas do hotel. De pouco em pouco, deu para juntar e construir uma pequena cisterna para a família e os eventuais hóspedes. “Mesmo assim, a gente ainda depende muito da cisterna municipal e da ajuda do prefeito, pois cada carro-pipa custa R$ 50, é muito caro”, complementa.

Os carros-pipas chegam de Inajá (PE) — cidade a 30 km de Manari e um pouco mais urbanizada — somente quando o prefeito, José Vieira Pereira, consegue subsidiá-los para a população. Também é comum encontrar tonéis na frente das casas para acumular água da chuva. Garrafas plásticas, do tipo PET, são acopladas a um cano próximo ao teto das residências e, quando chove, a água cai no tonel para em seguida ser estocada. “Só tem um problema”, explica Zacarias Manoel de Araújo. “Há 12 anos não chove o suficiente para encher o açude ou acumular um pouco de água nesses tonéis. Choveu bastante no início deste ano, sabe Deus quando vai chover novamente agora.”

O problema de água não é exclusivo de Manari. São inúmeras as cidades brasileiras que enfrentam problemas similares. O contraste reside no sentimento, quase universal entre os moradores, de que Manari é um excelente lugar para se morar. Não é à toa que o prefeito é conhecido como Santo Vieira. Uma figura intocável, tamanha é a proteção dos residentes. “Não votei nele na última eleição, mas reconheço que ninguém nunca trabalhou e lutou tanto pela gente como Santo Vieira”, adianta Araújo, proprietário do Salão da Sinuca, principal ponto de entretenimento da cidade — três mesas para jogar e muita prosa para entrar. Cada partida custa R$ 0,10 e o caderninho de fiado é grande.

O sonho de ir embora

Situação comum em grande parte do Brasil, a população mais jovem não hesita em tentar juntar dinheiro para arriscar a vida na capital. O problema é que a capital em questão é uma só: São Paulo. Na entrada da cidade, um dos primeiros letreiros visíveis é o de “Viagens para São Paulo, compre passagem aqui”. Quem quiser se aventurar, paga R$ 130 por um lugar na Sprinter que chega de Inajá e vai buscando os passageiros nas cidades vizinhas. São duas viagens por semana, pegando gente de todas as cidades das redondezas.

“Os mais jovens são mais afoitos e, se você for perguntar, quase todos já foram para São Paulo arriscar a vida procurando emprego. Depois, vêem que o lugar deles é aqui mesmo e voltam”, afirma Maria José de Araújo, esposa de “seu” Zacarias Araújo, da sinuca. Eles se conheceram em Alagoas, casaram e se mudaram para Manari. À beira dos 65 anos e quase sem visão, Maria José se orgulha de nunca ter deixado a cidade, apesar de ter seis filhos e quatro netos morando em São Paulo. “Eles vivem pedindo que a gente vá, vêm nos visitar uma vez por ano, querem nos levar a todo custo. Daqui eu só saio no caixão, não tem lugar mais tranqüilo do que Manari”, arremata, achando que é mais fácil os filhos voltarem antes.

Bruno Moreno Filho tem 9 anos e cursa a 2ª série do ensino fundamental. Aprendeu a ler há pouco tempo e já assegura: “quando crescer, vou para São Paulo trabalhar e mandar dinheiro para minha mãe”. A escola municipal de Manari vai até a 8ª série. Quem quiser cursar o Ensino Médio, precisa enfrentar uma hora de ônibus até Inajá, para estudar na escola estadual.

José Luís da Silva, funcionário de um bar sem nome que atende apenas durante a tarde, é paraibano e resolveu fixar residência temporária em Manari por causa de parentes. Está há apenas quatro meses e não vê a hora de voltar à terra natal. “Não entendo como as pessoas daqui podem dizer que a cidade é ótima. Tudo bem, aqui ninguém mexe com você, não tem assalto, não tem morte e todo mundo se conhece. Mas não tem nada.”

Prefeito santificado

A opinião é unânime entre os moradores: o prefeito é santo. Quase intocável. Quando é época de eleições, deputados e senadores enchem a cidade com promessas de melhorias para conseguir votos e, como sempre, somem depois que se elegem.

Para todas as pessoas entrevistadas por esta reportagem, o atual prefeito — em segundo mandato — é o único que realmente trabalha o ano inteiro para conseguir carros-pipas e aumentar o contingente de famílias beneficiadas pelos programas sociais da União. A proteção ao prefeito é tão grande que visitantes ou forasteiros chegam a ser hostilizados quando o procuram.

“Ele é muito bom para a gente. Tem deputado e senador aí que está eleito, vem para cá nas vésperas da eleição dizendo que vai conseguir água encanada para Manari, vai asfaltar a estrada e um monte de coisa. Falam isso para nós desde 1997. A gente não acredita mais em político de fora, só os daqui, que conhecem nossos problemas”, desabafa uma mulher, que não quer ser identificada e há dois meses juntou as economias e abriu um pequeno mercadinho vizinho à casa do prefeito.

Enquanto as promessas políticas não se concretizam, Manari sobrevive. Ao cair a tarde, as luzes se apagam e a cidade adormece. Quem volta da lavoura não tem mais disposição para nada. Quem é aposentado ou está sem ocupação, procura o botequim para tomar uma “branquinha” (cachaça) e jogar sinuca.

Seu Zacarias Araújo e Maria José, os proprietários do Salão da Sinuca, não vendem mais cachaça. “O pessoal fica bêbado, fala muita besteira e vai embora sem pagar. Quando vamos cobrar, dizem que não lembram. A gente não reclama muito porque entende a situação, é mesmo muito ruim. Se não fosse a sinuca e a bebida, muita gente não sobreviveria por aqui”, lamentam.

Mesmo assim, hoje em dia a cachaça não é mais vendida no salão. Apenas cerveja e catuaba. O preço da cerveja é o mesmo praticado nas capitais. Ou seja, só quem a bebe é forasteiro e os comerciantes que chegam na cidade, uma vez por semana, quando ocorre a feira na praça principal.

Manari é assim. Comércio quase inexistente e saúde pública intermitente. Mas poucos dizem que querem ir embora. E quem vai uma vez, quer voltar para continuar ouvindo as histórias de vida de verdadeiros heróis brasileiros.