Zabé da Loca, rainha do pife

Paulo Rebêlo
Revista Carta Capital
Ed. 454 – 25.julho.2007

Aos olhos de um Brasil que desconhece o Brasil, a descrição de Isabel Marques da Silva se parece com a descrição de uma típica mulher do sertão nordestino. Aos 84 anos, é alcoólatra, fumante compulsiva, tem as marcas do trabalho pesado nos pés, carrega no rosto os profundos vincos formados por anos de exposição ao sol forte, criou-se e formou-se com a enxada na mão. Seus dias parecem se resumir a apreciar, à soleira da porta, a mesma paisagem seca que a acompanha há décadas, olhar as mesmas pessoas que passam por aquele distante pedaço de terra quase perdido na fazenda Santa Catarina, uma região permeada de rochas gigantes a 20 quilômetros de Monteiro, sudoeste da Paraíba.

Isabel, a Zabé da Loca, é sem dúvida uma sertaneja, mas de comum tem apenas a aparência. Porque para um Brasil que desconhece o Brasil, pouco adianta dizer que ela é a rainha do pife, esse instrumento rústico de som agudo, uma flauta com nove orifícios que se assemelha ao oboé italiano, feito a partir de vários materiais. Entre os pifes utilizados por Zabé em quase oito décadas de dedicação, é possível encontrar até um instrumento de PVC.

E é com os pifes e uma pequena banda formada por amigos e familiares que Zabé da Loca roda o Brasil, quase sempre em festivais de música popular. Ao menos “enquanto tiver força para viajar por esse Brasil que é bom todo”, como ela mesma diz, entre uma tragada e outra de fumo-de-rolo, amassado num pedaço de papel tirado do bloquinho de anotações. Haja força e resistência para quem passou quase 30 anos em uma loca (gruta) entre duas grandes pedras, no alto da Serra do Delmiro, nome do marido já falecido, também conhecida como Serra da Matarina.

Foi da loca que nasceu o apelido e depois nome artístico pelo qual é conhecida não apenas no Cariri paraibano, mas em todas as cidades por onde passou e mostrou seu trabalho. O ofício de tocar pífano, ou “pife”, como é mais conhecido por essas bandas, ela aprendeu aos 7 anos com o irmão Aristides, de quem não sabe o paradeiro. Nascida em Buíque, no agreste pernambucano, logo criança veio com a família e outros retirantes para o sertão paraibano, de onde não saiu mais. Trabalhou sozinha com a enxada e conseguiu construir uma casa de taipa na serra, longe de tudo e de todos. “Para ninguém me incomodar”, completa. Dos 15 irmãos, Zabé viu morrer oito: de fome, de doença, de sede, de cansaço.

Zabé conta como foi morar, por necessidade, dentro de uma gruta, no meio de uma fenda entre duas rochas. Após um acidente que destruiu a casa de taipa, sem dinheiro e viúva (o marido morreu de infarto, na mesma serra, enquanto procurava por água estocada nas rochas), foi na pequena gruta que criou os três filhos, que hoje nem sequer a visitam. Ao sair para trabalhar com a enxada, ela cavava buracos nas sombras das árvores e os deixava lá, protegidos por trapos, enquanto ia cultivar a pouca comida que a natureza permitia tirar da terra. Quando o sol se punha por trás das rochas e caía a noite, era o som do pife que minimizava a dor da fome e espantava os fantasmas, dando força para enfrentar o implacável frio noturno do Cariri.

Encontrar Zabé em casa é fácil. Quando não está Brasil afora em apresentações, passa o dia à beira da porta, de olho na rua. Difícil é encontrar a casa. Na estrada que sai de Monteiro em direção ao município de Sumé, é preciso entrar no meio das terras da fazenda Santa Catarina, pegar um trecho de 15 quilômetros de barro e pedregulhos. Várias entradas à frente, chega-se finalmente ao sítio Tungão, onde Zabé mora sozinha em uma pequena casa de quarto e sala, praticamente sem móveis. A surdez se agrava com o passar dos anos. Ela não entende muito bem a saudação, mas abre um sorriso maroto e quase juvenil quando pergunto se é mesmo a famosa Zabé da Loca, a Rainha do Pife.

Não demora e os amigos se reúnem ao redor da casa, que em uma linha imaginária fica a uns 30 minutos abaixo da sua antiga gruta, abandonada há cerca de dois anos, mas que ainda mantém as mesmas características de quando Zabé morava lá.

Conhecer a loca de Zabé é um pouco mais complicado. Ela não tem mais a força de antigamente e, suspeita-se, talvez nem vontade de voltar para revisitar um passado de triste lembrança. Talento reconhecido regionalmente, Zabé foi agraciada pelo governo da Paraíba com dois salários mínimos todo mês (ela ganha um salário do INSS, de aposentadoria como trabalhadora rural) por meio de um programa que premia os mestres da cultura popular. No sertão, com três salários mínimos é considerada “rica”, a ponto de atiçar a inveja alheia, que precisa ser gerenciada pela amiga, vizinha e companheira de banda Josivane Caiano da Silva, tocadora de prato. É ela quem cuida dos remédios e da agenda.

Um dos melhores amigos de Zabé nos leva para um tour pela região ao redor da gruta. Antônio Soares da Silva, o Pitó, mostra o caminho das pedras (literalmente) serra acima, até chegar à loca. São quase 40 minutos de caminhada. Há dois anos, a gruta virou cenário de um luau em comemoração ao lançamento do segundo CD, parte da coletânea Cânticos do Semi-Árido. Foi a última vez que Zabé se aproximou da antiga casa. Pitó mostra como ela usava as pedras para fazer o xerém (canjiquinha, para os paulistas) com o milho e os buracos nas rochas para armazenar água da chuva, procedimento utilizado por quase todos na região. O sol começa a se pôr. Zabé nos espera com touca, manto, um pife improvisado, um fumo-de-rolo e um bule cheio de café passado na hora, no velho fogão a lenha, um dos seus xodós. “É bom todo”, responde, enquanto ajeita o resto de lenha.

* fotos: João Carlos Mazella

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