São Francisco se transforma no rio da discórdia

Projeto de transpor as águas coloca em lados opostos ribeirinhos e sertanejos

Paulo Rebêlo
Folha de S. Paulo | 26/dez/2007
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O chão é árido a ponto de rachar. Os galhos quebram com facilidade de tão secos. Açudes e palmas de cactos que servem como alimento de animais -e até de seres humanos- também secam. Se vivo estivesse, Graciliano Ramos certamente diria que as vidas nunca deixaram de ser secas. Ele só não saberia explicar como pode haver tanta água a poucos quilômetros de um cenário tão ríspido.

Às margens do rio São Francisco, o agricultor Valdemar Bezerra Luna criou filhos e netos nessa região longe de grandes cidades e carente de infra-estrutura. Afinal, dos 84 anos 54 foram à beira do rio no sertão pernambucano. Depois de tanto tempo, ele garante que sua própria existência tornou-se uma extensão do rio, com benesses desde a água para consumo até a manutenção de uma pequena roça com a qual alimenta a família. A vida de seu Valdemar não é muito diferente da de milhares de famílias às margens do gigantesco rio com 2.863 km de extensão, cuja nascente fica na Serra da Canastra (MG). As turvas águas da bacia hidrográfica do São Francisco percorrem 504 municípios, com população ribeirinha que ultrapassa os 13 milhões.

Seu Valdemar anda curioso com as conversas dos amigos sobre o tal projeto do governo de levar “um pouco d’água” para outros Estados do Nordeste. Alheio à polêmica, ele duvida de que o rio será prejudicado como tanto falam. “Estamos nos alimentando do rio e até hoje não nos faltou, acho que se tirar um pouquinho e levar para quem também precisa não vai fazer mal”, pondera. Nostálgico, lembra os bons tempos de um vigoroso Velho Chico, bem diferente da condição precária de hoje, sem peixes e com água impossível de beber sem o uso controlado de remédios, como o hipoclorito de sódio, por conta da poluição.

Pelas letras oficiais, o projeto de transpor as águas do rio São Francisco para abastecer partes do semi-árido nordestino coloca em lados opostos governo, comunidade científica, ambientalistas, movimentos sociais e religiosos. O ponto comum que une os sertanejos -a esperança da água- tornou-se alicerce de uma discórdia entre irmãos. Negros, índios, brancos, ricos, pobres, agricultores, famílias inteiras. Acostumados à crueldade imposta pelas secas desde tempos imemoriais, agora falam em crueldade nos Estados vizinhos e dos técnicos do governo que não querem explicar o que vai acontecer com o rio. Conhecido como rio da integração nacional, hoje o São Francisco torna-se o rio da discórdia ao colocar em pé de guerra paraibanos, pernambucanos, baianos, sergipanos, cearenses e mineiros.

Não obstante a poluição, a vida às margens do São Francisco não é tão ríspida quanto em outras locações sertanejas, como ocorre com o casal de agricultores Ailton e Silvia Tavares, em Monteiro (PB). No centro de uma região seca e rochosa, à primeira vista os Tavares são privilegiados, pois moram a poucos metros de um açude. Mas a água é tão poluída e barrenta que até os animais rejeitam. E na região do Cariri paraibano, a dificuldade de conseguir o hipoclorito de sódio é notória, já que o produto é distribuído pelo Ministério da Saúde -de acordo com a população local, está constantemente em falta. As pessoas estão sempre doentes com ameba, principalmente crianças.

A esperança da população rural de Monteiro atende por um nome: transposição. O agricultor Vlamir Bezerra Japyassu, 40, resume a espera ao repetir que “não quer dinheiro, quer apenas água”. Para plantar, produzir, comer e vender. Sem água, garante, tudo morre. Eles também. Silvia Tavares tem uma fé quase cega de que, com a transposição, os piores problemas acabam. “Quem tem em abundância não sabe o que é beber um copo de líquido barrento para sobreviver.”

Em matéria de sobrevivência pelo rio, poucos têm mais autoridade do que os índios trucás nos arredores de Cabrobó, de volta a Pernambuco, onde a primeira etapa da gigantesca obra da transposição tem início. Saindo do Recife, são seis horas de estrada até este pequeno município de 28 mil habitantes. Os trucás são os maiores produtores de arroz em Pernambuco e também abastecem várias cidades da região com feijão e cebola. A tarde já começa a cair e, para chegar ao início das obras da transposição, é preciso percorrer mais 40 minutos entre rodovia e estrada de terra. A porteira de acesso ao primeiro canal do eixo Norte, previsto para ligar Pernambuco ao Ceará, está fechada. A entrada é proibida. E, para desespero da população que espera receber água da transposição, as obras estão paradas novamente.

Com auxílio dos índios, é preciso ir de canoa a um caminho alternativo, por onde o Exército não irá ver nossa chegada ao local onde estão as primeiras escavações. Os trucás reafirmam que ali naquela terra não vão deixar o governo construir nada, pois a terra é deles. Não cansam de repetir que, pela Constituição, não é permitido construir nada em território indígena sem a permissão dos índios. Segundo o cacique Neguinho, líder do movimento trucá de oposição às obras, não houve nem sequer diálogo para atender às reivindicações da tribo.

Em conjunto com a tribo dos tumbalalás, do outro lado do rio, já na Bahia, as lideranças indígenas argumentam que o São Francisco está morrendo e o governo nunca se prontificou a revitalizar a bacia, prejudicando toda a população ribeirinha. E agora, com a transposição, ambas as tribos acreditam ser a oportunidade de ouro para levantar a bandeira histórica da demarcação de terras. “Já nos enganaram uma vez quando construíram a barragem de Sobradinho, todo mundo tinha peixe em abundância e, agora, quem consegue pescar é um sortudo. Não há mais nada. Não vão nos enganar novamente”, afirma Neguinho.

Enquanto isso, na região que espera a chegada das águas do São Francisco pela transposição, as obras são aguardadas como salvadoras de tempos secos e água escassa. No Cariri paraibano, a população não quer nem ouvir falar o nome dos trucás. Teoricamente, a área poderá ser uma das principais beneficiadas.

Projeto de transposição das águas remonta ao Império

A transposição do São Francisco é um “sonho” que data do Império. Sob a gestão de Lula, novamente levantou-se a bandeira do desenvolvimento do Nordeste a partir das águas do rio para programas de irrigação e abastecimento humano. Comandada pelo Ministério da Integração Nacional, a previsão oficial é usar 2% do volume total de água, com vazão mínima de 26 m3/s e máxima de 127 m3/s. São dois gigantescos canais construídos no coração do sertão. O eixo Norte liga Pernambuco ao Ceará; e o eixo Leste, cujo canal tem início em Floresta (PE), deve retirar água da barragem de Itaparica na Bahia e levar até a Paraíba.

Em abril de 2005, o Ibama concedeu licença prévia para o início das obras. Hoje, quase três anos depois, o cenário pouco mudou. O coordenador da Transposição no Ministério da Integração Nacional, Rômulo Macedo, afirma que respeita a reivindicação dos índios trucás para que o governo demarque as terras, mas não entende a insatisfação da tribo. “Eles [os trucás] são os maiores beneficiados com a transposição. Na ilha de Assunção, onde moram, a pista era toda de barro e hoje está com estrada. Construímos casas que antes não existiam, há o projeto paralelo de revitalização da bacia hidrográfica pelo qual estão tendo saneamento básico, que sempre foi uma demanda antiga”, enumera. “Se todas as tribos disserem que a terra é deles sem comprovação, então não vai sobrar mais nada no Brasil”, ironiza.

O coordenador do escritório da Transposição em Monteiro (PB), Lusbene Cavalcanti Júnior, classifica como “impropérios” as argumentações contrárias à transposição. “Esse pessoal não sabe o que é beber água barrenta, amarela, não conhece a realidade do sertão.” Lusbene cita um dos pilares mais fortes de quem defende o projeto: a evaporação. “Sem a adução que a transposição irá trazer, o sol leva boa parte da água nos açudes, é uma maldade completa.”

Para as lideranças da CPT (Comissão Pastoral da Terra) no Nordeste, o custo da transposição é um despejo de dinheiro público perigoso e desnecessário. Roberto Malvezzi, da CPT em Juazeiro (BA), diz ser perigoso porque os maiores beneficiados serão fazendeiros que lidam com fruticultura irrigada, carcinicultura (criação de crustáceos) e outras atividades com demanda de alto volume de água. “O argumento de matar a sede é falacioso, mas conquista o público leigo pelo tom emotivo. Não somos contra o desenvolvimento econômico, como dizem os pró-transposição; mas é preciso estabelecer prioridades. Recursos públicos devem ser usados para benefício humano, não para um punhado de gente com grandes empreendimentos econômicos. Todo mundo sabe da existência da indústria da seca, é como se ganha voto no sertão, não vai mudar nada”, contesta Malvezzi, ao contabilizar quase 500 alternativas viáveis elaboradas pela ANA (Agência Nacional das Águas), órgão do próprio governo, custando metade do valor calculado pela transposição para resolver o problema.

O diretor de engenharia e construção da Chesf (Companhia Hidroelétrica do São Francisco), José Ailton de Lima, explica que inicialmente o órgão foi contra as obras porque poderia perder volume de água para geração de energia nas hidrelétricas, mas hoje os técnicos entendem que a relação custo-benefício vale a pena. “O melhor de todo o projeto é a geração de segurança hídrica para a região, pois antigamente acreditava-se que apenas açudes resolviam o problema, hoje o cenário é outro. Só o desperdício com a evaporação é maior do que todo o volume de água que a transposição pode tirar do rio. No Nordeste, essa perda (por evaporação) chega a 17% da água acumulada em açudes. Pior, hoje o governo não tem controle sobre as águas, tem açude público sendo controlado por aglomerados econômicos ou grupos de fazendeiros, sem fiscalização ou regularização alguma”, afirma.

Moradores acusam índio de tomar terras

Ao atravessar o São Francisco pelo lado pernambucano, na outra margem a população do povoado de Pedra Branca (BA), está com medo dos índios. Ao perceberem a movimentação da reportagem no caminho da tribo dos tumbalalás, o povoado pede que alguém dê ouvidos para os “brancos” que não têm representação nos corredores do poder. Os moradores acusam os índios de olhar apenas para o lado deles, aparecendo do nada com o debate da transposição para reivindicar terras que não são deles. Formada em geografia pela Cesvasf de Belém do São Francisco, Rosilda Orcelina dos Santos, 35, teme pela perda das terras deixadas por herança de familiares.

Posição idêntica tem o agricultor José Hipólito da Cruz, a técnica em contabilidade Poliana Alves Santos, a aposentada Maria Nicanor Sares de Araújo e tantos outros. “Para defender os índios sempre aparece um monte de gente, padre, autoridade… mas e nós?”, indaga Maria. Nos dias em que a reportagem esteve lá, os tumbalalás bloquearam. Eles explicam que não são numerosos como os trucás, mas vão aproveitar a transposição para exigir a delimitação das terras. Questionados sobre as críticas, ambas as tribos garantem que estão lutando pelo que é deles “de direito”.

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