São Francisco // Ribeirinhos alheios à transposição

RECURSOS HÍDRICOS // População que vive às margens do São Francisco não aceita os argumentos sobre prejuízos e benefícios

Paulo Rebêlo
Diario de Pernambuco – 27.abr.2008
fotos: João Carlos Mazella

Outrora conhecido como o maior centro de distribuição do chamado Polígono da Maconha, que produz e exporta a droga para vários pontos da região, hoje o município de Cabrobó, com apenas 28 mil habitantes, é um dos principais entraves para o governo federal no ambicioso projeto de transposição do Rio São Francisco. Inicialmente previsto para terminar em 2010, o empreendimento promete levar água para áreas menos favorecidas do Nordeste Setentrional e, segundo promessas oficiais, beneficiar 12 milhões de pessoas e gerar oportunidades para agricultura familiar e o agronegócio.

Não obstante a bandeira social de levar água a quem tem sede, passados três anos desde a licença prévia concedida pelo Ibama em abril de 2005, a transposição conseguiu um feito que dificilmente alguém imaginaria e, ainda hoje, é pouco explorado por estudiosos e governos: o conflito entre irmãos. Ponto nevrálgico entre os sertanejos, a esperança por água tornou-se alicerce de uma discórdia que não escolhe classe social, raça, profissão, ideologia e até religião.

Se de um lado os pesquisadores, cientistas, técnicos e políticos trocam farpas e não se entendem sobre os prejuízos e benefícios da proposta, do outro são os próprios sertanejos que não aceitam os argumentos mútuos e a forma como o debate tem sido conduzido. Enquanto a maior parcela dos moradores nos 2.800 km de extensão do Velho Chico desconhece os meandros técnicos da transposição, outra parte não aceita que esses mesmos ribeirinhos, que moram e se beneficiam de “tanta água”, se posicionem contra a proposta de levar água às regiões onde há escassez aguda e, teoricamente, garantir uma maior segurança hídrica. Como é o caso de Monteiro, na Paraíba.

Cabrobó tornou-se uma das artérias da transposição, não apenas pela resistência dos índios trukás e dos movimentos sociais contra o projeto, mas por ser o ponto inicial do Eixo Norte, que irá fazer a conexão hídrica entre Pernambuco e Ceará. O segundo Eixo (Leste), cujo canal começa em Floresta (PE), deve retirar água da barragem de Itaparica na Bahia e levar até a cidade de Monteiro, no cariri paraibano. As seis horas de estrada do Recife até o início do eixo norte não significa quase nada, ao calcular os 2.800 km de extensão do rio, cuja nascente se encontra na Serra da Canastra, em Minas Gerais.

Em seu percurso completo, o São Francisco corta 504 municípios e a população ribeirinha ultrapassa a marca de 13 milhões de pessoas. Seja na Bahia, em Pernambuco, Paraíba ou Ceará, naquelas terras áridas onde os galhos se quebram sozinhos, o chão racha de tão seco e a palma de cacto continua a servir de refeição para muita gente nos piores momentos de seca, perguntar a qualquer pessoa se ela é contra ou a favor da transposição é quase igual a perguntar por qual time de futebol ela torce. As informações são desencontradas. A maioria desconhece o que se pretende fazer, ao mesmo tempo em que replicam e multiplicam os discursos orientados por lideranças políticas ou comunitárias, nem sempre comungando de interesses coletivos.

Sobrevivência – De concreto, o que os ribeirinhos sabem e entendem melhor do que qualquer técnico de ministério ou liderança política é a difícil arte de sobreviver do rio, pelo rio e para o rio. Em algumas regiões, a água que se bebeu diretamente das margens do Velho Chico, durante décadas, hoje é tão poluída que até para cozinhar não serve mais. Em outras, a abundância de peixes que alimentou gerações inteiras também cessou, dando espaço a minguadas refeições de arroz, ovos e farinha. O rio está morrendo, dizem os índios. O rio vai morrer com a transposição, profetizam os ambientalistas. O rio representa a integração nacional, bradam os pesquisadores. O rio é a redenção do Nordeste, discursa o governo. O rio são eles, espalhados pelos 2.800 km entre a fome a fartura.

Proposta concreta ou promessa?

Tornou-se praxe afirmar que a transposição do rio São Francisco é um sonho que data do Império e, agora, pode se transformar na redenção do Nordeste. Pouco se discute, contudo, sobre a crueldade imposta pela seca desde tempos imemoriais, assim como as promessas eleitorais de pôr fim ao martírio. Seria a transposição o início de um desenvolvimento concreto ou mais uma das promessas?

Para as lideranças da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o custo da transposição (R$ 4,9 bilhões) é um despejo de dinheiro público desnecessário. Roberto Malvezzi mantém um discurso similar ao do bispo de Barra (BA), dom Luiz Cappio, o religioso que optou por duas greves de fome como forma de protesto contra a transposição. Para eles, os maiores beneficiados serão fazendeiros que lidam com fruticultura, carcinicultura e outras atividades que demandam muita água.

“O argumento de matar a sede é uma falácia, o governo conquista pelo tom emotivo. Não somos contra o desenvolvimento econômico, mas é preciso estabelecer prioridades parabenefício humano. Todo mundo sabe da existência da indústria da seca, é como se ganha voto no sertão, não vai mudar nada”, contesta Malvezzi, ao contabilizar quase 500 alternativas viáveis elaboradas pela ANA (Agência Nacional de Águas), com metade dos recursos.

Valdemar Bezerra Luna, agricultor que criou duas gerações da família às margens do São Francisco em Pernambuco, mostra o resultado de anos de sofrimento pelo qual o rio tem passado: o hipoclorito de sódio, utilizado pela indústria como desinfetante e alvejante, hoje é a única saída para quem usa a água do rio para beber, cozinhar e alimentar os animais. A solução é entregue pelo Ministério da Saúde, mas a demanda supera a oferta. Resultado: muitos com ameba e outros problemas de saúde.

Paraibanos sonham com obra

Em outra ponta da polêmica, no destino final do Eixo Leste, a esperança por uma vida melhor em Monteiro (PB) atende por um nome só: transposição. Os olhos dos agricultores parecem brilhar a cada nova notícia para que as obras sejam aceleradas. Vlamir Japyassu, Silvia Tavares e seu marido, Airton, dizem em coro: “a gente não quer dinheiro, só quer água para plantar, comer, produzir”. Se por convicções ideológicas ou por meio de lideranças políticas, quase todos em Monteiro não agüentam sequer ouvir sobre índios trukás, que prometem não deixar o governo completar o canal em Cabrobó. Alegam que as construções estão em terras indígenas e que não foram indenizados, nem consultados. As terras sequer foram demarcadas, mas o governo já indenizou os donos que possuíam as escrituras.

A exemplo dos trukás, a tribo dos tumbalalás, no lado baiano do São Francisco, também se movimenta contra as obras. Ambas as tribos admitem que podem repensar suas posições caso o governo resolva reestabelecer o diálogo sobre a demarcação.”As terras são nossas”, não cansa de repetir o cacique Neguinho, líder truká. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a questão vem sendo postergada há vários governos.

A ausência de termos conclusivos sobre a posse das terras por onde passam os canais da transposição pode gerar um atrito ainda maior e violento. Em Pedra Branca (BA), os moradores denunciam que as tribos indígenas estão invadindo propriedades privadas sob o argumento de que as terras são deles. Muita gente desistiu de tentar reaver as propriedades após o bloqueio dos índios. Rosilda dos Santos é uma das que teme pela perda das propriedades herdadas dos familiares. “Somos os donos legais. Nossas escrituras não valem mais nada?”, questiona.

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