Observatório, 16.setembro.2003
Todo cuidado é pouco com Mp3
Paulo Rebêlo (*)
A prisão do paranaense Alvir Reichert Júnior em 25 de agosto, em Curitiba, acusado de vender Mp3 pela internet, pode ter dado início a longa batalha técnica e jurídica entre usuários brasileiros e gravadoras. O caso também é revelador por reafirmar um certo quadro de letargia da imprensa de tecnologia no Brasil.
Após investigação da Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos (APDIF) (http://www.apdif.org.br), Reichert foi preso em casa, numa segunda-feira pela manhã, acusado de vender músicas pirateadas através do site Mp3 Forever. Na prática, a Associação é um braço da Recording Industry Association of America (RIAA) no Brasil.
Aconteceu o seguinte: Reichert foi a primeira pessoa a ser presa a partir da mudança da lei nº 10.695 (http://www.rebelo.org/files/mp3/lei10695.pdf), sancionada em 2 de julho deste ano pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A mudança altera os artigos 184 (http://www.rebelo.org/files/mp3/art184.pdf) e 186 do Código Penal e acrescenta parágrafos ao artigo 525 do Código de Processo Penal.
A nova lei, que entrou em vigor 30 dias após a assinatura do presidente, é resultado de um projeto de lei datado de dezembro de 1996, de autoria do próprio Poder Executivo, para coibir os delitos contra direito autoral e propriedade intelectual. Prevê reclusão (prisão) de até quatro anos por crimes de pirataria.
Prevê ainda que a cópia de obra intelectual ou fonograma, “em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto”, não configura crime. Ou seja, até aí nada de novo. Você pode fazer Mp3 de seus próprios CDs, mas não pode sair pegando Mp3 de CDs que você não comprou, visto que isto configuraria um “lucro indireto e, conseqüentemente, um crime”, nas palavras do diretor jurídico da APDIF, Jorge Eduardo Grahl.
Há provas documentais de que Reichert violou não apenas a lei, como também parece nunca ter feito questão de se esconder ou de se manter anônimo, como veremos mais adiante.
No entanto, mais de uma semana se passou e ainda há muitas perguntas sem respostas.
O que levou a APDIF a prender um peixe pequeno, diante de tantos fatos irrefutáveis de pirataria em larga escala, às vezes industrialmente, debaixo do nariz de todos nós? Por que a APDIF se recusa a revelar informações adicionais sobre a investigação, quando muitas das provas e documentos são públicos? Estaria a APDIF seguindo o exemplo (http://www.rebelo.org/files/mp3/EUA01.pdf) da RIAA nos Estados Unidos, de tentar conter a pirataria amedrontando usuários domésticos e pressionando provedores de acesso (http://www.rebelo.org/files/mp3/EUA02.pdf)?
E, finalmente: você, usuário comum, pode ir preso por baixar música em programas P2P?
Você pode ser o próximo, se a APDIF quiser
Responda: você costuma fazer download de Mp3 pela internet? Em caso positivo, você pode ser o próximo da lista. De acordo com os juristas e especialistas ouvidos por esta reportagem, o caso de Reichert abre precedentes para que a APDIF vá atrás de qualquer pessoa que viole os direitos autorais das gravadoras, independente de quantidade.
Afinal, o respaldo judicial já existe. O empurrão inicial que faltava foi dado com Reichert.
O diretor jurídico da APDIF, Jorge Eduardo Grahl, explica que a lei permite punição para “aquele que copia ou distribui música com o intuito indireto de lucro. No caso, há o entendimento de que quem copia ou compartilha arquivos com a intenção de economizar por não pagar pelos direitos autorais e impostos automaticamente está tendo lucro indireto e, portanto, enquadra-se na violação de direitos autorais”, dispara.
Em outras palavras, pode estar na mira da APDIF quem não compra o CD na loja e baixa a Mp3. Se a associação vai ou não perder tempo com isso enquanto a pirataria industrial corre solta, aí é outra história.
Grahl ressalta ainda um fator que muito interessa à maioria dos internautas: quem utiliza programas P2P, como Kazaa, eMule, Grokster, entre outros, não somente copia músicas mas também disponibiliza todo o seu acervo aos demais usuários, o que pode complicar ainda mais a situação na hora de colocar os pontos nos is.
Apesar das investidas recentes da APDIF, fato é que monitorar internautas para saber o que eles estão fazendo é um tema de recorrente polêmica e discussão.
Para o advogado paranaense Omar Kaminski, especializado em direito da informática, as autoridades deviam se preocupar em ir atrás dos grandes fraudadores. “Está havendo mobilização de força policial e imposição de penas severas, privativas de liberdade, para a proteção de interesses corporativos, deixando tantos outros para terceiro plano. A pirataria fonográfica industrial, em larga escala, é que traz prejuízos ao país com a sonegação de impostos. É contra tais criminosos que a lei deve ser aplicada com rigor”, critica Kaminski, que passou a integrar a banca de defesa de Reichert, juntamente com Alexandre Pesserl e Eduardo Miléo.
Em tempo: Alvir Reichert Júnior foi solto no dia 29 de agosto, após pagamento de fiança no valor de 20 salários mínimos. O valor foi reduzido, sendo antes estipulado em 200 salários. Ele vai responder em liberdade por ter violado os parágrafos 1, 2 e 3 do artigo 184 do novo Código Penal. O alvará de soltura foi concedido pelo juiz Marcelo Ferreira, da Central de Inquéritos de Curitiba, o mesmo que estipulou a fiança inicial em 200 salários e depois a reduziu.
Usuários temem represálias
Entre internautas e técnicos ouvidos pela reportagem, há um certo consenso de que Reichert pode ter sido um reles bode expiatório. Para alguns usuários acostumados a trocar gigabytes de Mp3 pela internet, ele cometeu o mesmo erro que todos cometem: achar que a lei de direitos autorais é letra morta, ou seja, só funciona na teoria. Aquela velha história de “isso nunca vai acontecer comigo”.
Não obstante, o esquema do site Mp3 Forever era pesado. Mais adiante veremos como era o funcionamento dessa espécie de clube para assinantes e as provas documentais que a APDIF não quis revelar à imprensa.
Para o técnico-desenvolvedor Gustavo Vasconcelos, 28 anos, a prisão de Reichert foi merecida porque ele vendia descaradamente músicas que não lhe pertenciam. Mas acrescenta: “Não é justo que façam caça às bruxas com usuários e que nos tratem como criminosos. Somos consumidores. Que prendam os criminosos, que ganham dinheiro criando rede de venda parar lucrar com isso; que apreendam CDs piratas que vêm da China. Por que não desmontam as barracas de camelôs que vendem CDs piratas?”, questiona Vasconcelos, que chegou a fazer parte de um grupo de usuários que mantinha contatos eventuais com Reichert para trocar informações sobre Mp3.
O diretor-geral da APDIF, Valdemar Ribeiro, não descarta a possibilidade de começar a intimar, judicialmente, usuários domésticos que façam download de Mp3, a exemplo do que tem ocorrido com freqüência nos Estados Unidos. “A legislação brasileira é clara em tipificar essa atuação como crime. Está previsto no Código Penal, podendo o envolvido inclusive ser condenado à pena de reclusão, que varia de dois a quatro anos, além de multa”, avisa.
Segundo Ribeiro, a APDIF conta com uma equipe especializada de monitoramento e investigação via internet, com ferramentas de busca de conteúdo ilegal e métodos de identificação de usuários. Nos últimos três anos, garante, a associação já fechou mais de 20 mil sites piratas.
Um grupo de usuários recifenses costumava manter certo contato informal com Reichert, antes da prisão. A reportagem conversou com quatro integrantes, dos quais nenhum aceitou ser identificado, com medo de represálias por parte da APDIF. Afinal, a polícia apreendeu dois computadores de Reichert que podem conter informações pessoais sobre os participantes do grupo.
Uma das mais assustadas, a administradora C.B.C., 23 anos, ainda tem dificuldades em aceitar a prisão de Reichert por causa de Mp3. Os dois chegaram a trocar mensagens, apesar de C.B.C. garantir nunca haver comprado nada do site dele. “Baixar Mp3 não é motivo para deixar de comprar CDs. São os preços altos que inibem a compra. Se as gravadoras fossem menos preocupadas com os grandes lucros e mais com o consumidor, a situação seria diferente”, acredita C.B.C., com a segurança de quem exibe uma coleção de 500 CDs originais em casa, catalogados.
Vasconcelos diz: “A APDIF não pode simplesmente chegar e dizer que eu sou um criminoso porque compartilho minhas músicas com meus amigos, faço compilações para dar de presente a alguém, peço uma amostra de um artista que quero conhecer ou gravo CDs que não existem no Brasil. No final das contas, isso é somente a fita K7 dos dias de hoje. Não é justo, estão deixando os peixes grandes livres e querem amedrontar os pequenos”, desabafa.
Criminoso ou bode expiatório?
Segundo a associação que representa as gravadoras, o brasileiro preso por vender CDs com Mp3 foi notificado, mas prosseguiu. A defesa diz que o réu tem bons antecedentes, e depoimentos o apontam como bode expiatório. Tivemos acesso a uma série de documentos, registros e depoimentos sobre o esquema entre o site Mp3 Forever, de Alvir Reichert Júnior, e a confusão que a imprensa não quis investigar.
O diretor-geral da Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos (APDIF), Valdemar Ribeiro, garante que os provedores de acesso e as empresas de hospedagem também arcam com responsabilidades em relação ao comércio pirata de Mp3. A posição oficial dos diretores da APDIF é que a associação não pode citar nomes agora, pois prejudicaria as investigações.
Alvir Reichert parecia não diferir de um usuário comum, com a diferença de que faturava seus trocados vendendo CDs personalizados de Mp3, situação claramente ilegal.
Informações da APDIF revelam que ele tem 35 anos e trabalha com edição de filmes. No ato da prisão, foram encontrados vários aparelhos de videocassete e duas TVs. Reichert tem dois filhos e mora com a família. O problema é que ele garante que nunca foi notificado oficialmente pela APDIF e que, no dia da prisão, policiais entraram na casa dele com armas em punho, causando terror aos parentes. Segundo consta, Reichert é réu primário e com bons antecedentes. A APDIF, em nota oficial à imprensa, afirma que todos os sites são oficialmente notificados e que com Reichert não foi diferente.
Uma outra situação é bastante clara: por ingenuidade ou descrença, Reichert nunca fez a menor questão em manter-se anônimo ou sequer esconder o negócio da venda de Mp3. Vejamos:
1) O domínio mp3forever.com.br, previamente utilizado por Reichert, foi registrado (http://www.rebelo.org/files/mp3/registro01.pdf) em nome da Foxsoft Consultoria e Informática Ltda (http://www.foxsoft.com.br), em Curitiba. O número do documento nos registros públicos da Fapesp é 003.240.939/0001-11, criado em junho de 2002. A APDIF se recusa a revelar informações apuradas sobre essa situação.
2) De acordo com a APDIF, o responsável pelo mp3forever.com.br (Reichert) já havia sido notificado e, então, resolveu mudar o domínio. O comércio de Mp3 passou a ser feito pelo endereço (http://www.comerciocuritiba.com), registrado no exterior (http://www.rebelo.org/files/mp3/registro03.pdf). A troca de endereços procede, de acordo com a APDIF e depoimentos de usuários.
3) O domínio comerciocuritiba.com foi registrado apenas em fevereiro de 2003. O site usava o DNS de um provedor brasileiro, o Hostsul, de Porto Alegre, que faz parte do Grupo Cyberweb Networks Ltda. Ou seja, Reichert não fez muita coisa para despistar ou se esconder, mesmo partindo da premissa de que tenha sido notificado pela APDIF. [Confira o CNPJ da Cyberweb (http://www.rebelo.org/files/mp3/cnpj.gif).]
4) A APDIF se nega a revelar qualquer coisa sobre o provedor de acesso ou hospedagem do mp3forever.com.br ou comerciocuritiba.com, mas garante que eles podem ser responsabilizados. Resta aguardar.
5) Como todo mundo sabe, todo provedor ou empresa de hospedagem possui um contrato. E os contratos de todos eles são claros em afirmar que não é permitido usar os servidores para hospedar conteúdo ilegal. Até as empresas de hospedagem gratuita se esforçam para tirar do ar esse tipo de conteúdo, apesar de umas se esforçarem menos do que outras.
6) O contrato da Hostsul não é diferente dos demais, como pode ser visto em (http://www.rebelo.org/files/mp3/contrato.pdf).
O esquema do Mp3 forever
Ironicamente, há registro de Reichert como ganhador de um prêmio (http://www.rebelo.org/files/mp3/premio.pdf) do site Emaildireto.com.br. O registro do prêmio revela que ele ficou em 7º lugar e levou uma impressora multifuncional PSC 750, cujo valor informado pelo site é de R$ 999. Há registros da participação de Reichert em listas de discussão mantidas pelo Grupos.com.br, como a lista Amizade Gospel (http://www.rebelo.org/files/mp3/lista1.pdf) e Tudo sobre Games (http://www.rebelo.org/files/mp3/lista2.pdf).
O site funcionava como uma espécie de clube. Os interessados pagavam uma mensalidade (http://www.rebelo.org/files/mp3/forever03.jpg) e podiam escolher um CD por mês ou uma certa quantidade de downloads.
Reichert gerenciava (http://www.rebelo.org/files/mp3/forever01.jpg) o site, listas de discussões para repassar as novidades da semana e notificar os participantes sobre quaisquer eventualidades, além de regras, direitos e deveres (http://www.rebelo.org/files/mp3/forever02.jpg).
Conseguimos contactar três desses participantes, que, evidentemente, exigiram anonimato com medo de represálias da APDIF. Os usuários M.H.P. e J.C.V. alegam nunca ter comprado nada de Reichert, mas participavam da lista de discussão mantida por ele e recebiam as novidades.
Entre os emails utilizados por Reichert, consta o ([email protected]), conforme se pode ver em algumas mensagens enviadas à reportagem como exemplo. Ele costumava assinar os emails apenas como “JR”, apesar de sempre se identificar normalmente. Veja amostra 1 (http://www.rebelo.org/files/mp3/email01.jpg), amostra 2 (http://www.rebelo.org/files/mp3/email02.jpg), amostra 3 (http://www.rebelo.org/files/mp3/email03.jpg) e amostra 4 (http://www.rebelo.org/files/mp3/email04.jpg).
Um usuário em especial, C.A.D., declarou-se próximo a Reichert. “O conheci quando ele ainda mantinha um grupo no Yahoo, o mp3forever, que depois mudou pra forevermp3, e depois ele criou o site. Ele mandava com uma frequência grande links onde podíamos baixar vários álbuns em Mp3. Geralmente links de contas de usuários do BRTurbo”, explica.
De acordo com C.A.D., o negócio ficou popular e tudo era catalogado em tabelas do Excel. A imagem de uma dessas tabelas, inclusive, faz parte do acervo liberado à imprensa pela APDIF. “O próprio arquivo do Excel, com fórmulas, fazia os cálculos da quantidade de CDs, preços, custo do frete etc.”, explica.
Fato é que, a exemplo da RIAA nos Estados Unidos, a APDIF por aqui conseguiu com maestria ao menos uma coisa: amedrontar muita gente.
Uma solução interessante, na visão de C.D.: “As entidades que lutam contra a pirataria na internet deveriam, primeiro, checar e coibir os grandes fornecedores offline, principalmente os internacionais. Se as coisas rolam na rede é porque tem quem sustente fora dela. Depois disso, impedir que os servidores de hospedagem permitam esse tipo de conteúdo ao público, pois se os arquivos não estiverem na rede os usuários domésticos nem podem baixar.”
(*) Jornalista no Recife (http://www.rebelo.org)