Indústria quer processar quem baixa MP3

Paulo Rebêlo e Guilherme Gatis
Folha de Pernambuco – 18.janeiro.2006

Ano 2003. Um curitibano é preso em casa, na frente das duas filhas pequenas, acusado de vender MP3 pela internet. O assunto ganha as manchetes de todo o País. Quatro dias depois, ele é solto e o processo continua em trâmite. Com tanta polêmica, o assunto cai no esquecimento da mídia e a indústria fonográfica brasileira evita continuar os processos judiciais. Ano 2006, hoje. As barraquinhas de CDs piratas se multiplicam em cada esquina das capitais brasileiras. Os álbuns de artistas famosos chegam ao mercado “alternativo” antes mesmo do lançamento oficial. Ao lado de delegacias e edifícios de instituições públicas, caixas e mais caixas de discos piratas são vendidos a R$ 5,00 – enquanto, nas lojas, o preço chega a valores surreais de R$ 30, R$ 35 para um CD fabricado nacionalmente. Com tanta coisa errada vindo de cima, a indústria fonográfica prepara um dossiê para, pelos próximos meses, analisar a possibilidade de processar judicialmente o usuário doméstico: aquele que está em casa, não vende nada ilegal, mas baixa MP3 pela web.

Fazer download de arquivos MP3, com músicas protegidas por direitos autorais, consiste em pirataria e é crime. O grande dilema na internet, nos últimos cinco anos, tem sido a classificação de até onde é ilegal baixar músicas pela rede. O usuário comum, que às vezes sequer tem noção de que um arquivo MP3 é ilegal, deve ir preso? E os atravessadores que vendem as músicas piratas, onde se encaixam? E por que há tantas barracas de CDs piratas nas cidades, debaixo do nariz das autoridades? São perguntas cujas respostas, até hoje, se perdem entre a burocracia da Justiça, a complacência de vários artistas e ações estranhas da indústria fonográfica que, agora, pensa em voltar a processar usuários domésticos no Brasil.

Na luta contra a troca de arquivos piratas na internet (filesharing), a indústria americana já tentou de tudo – tirar programas do ar, fechar sites que funcionavam ilegalmente e processar internautas que baixam MP3. No Brasil, o panorama é mais ameno, ao menos por enquanto. A batalha da Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD) é contra os discos piratas, vendidos livremente nas ruas, deixando os usuários livres para baixar músicas em programas P2P, do tipo Kazaa, eMule, Shareaza, entre outros. Acontece que a mamata pode estar próxima de um relativo fim, pois a ABPD agora está de olho na troca de arquivos.

Em recente entrevista a um periódico de tecnologia, o diretor-geral da ABPD, Paulo Rosa, revelou que o P2P no Brasil está com os dias contados. A associação está preparando um dossiê para medir o mercado ilegal de música digital, calcular os prejuízos e criar estratégias que podem incluir tanto medidas educativas como judiciais. Com a polêmica solta, a ABPD deu um passo atrás e, procurada pela Folha, negou-se a comentar a possibilidade de processar usuários. A associação confirma o dossiê e, após várias tentativas com a reportagem, revelou por meio de assessoria que o diretor-geral estava em férias e não poderia comentar. Enquanto isso, artistas e usuários pernambucanos ficam de sobreaviso e revelam suas opiniões sobre a questão.

MP3 preocupa artistas e usuários –

Baixar música pela internet não é mais um vício. Para vários artistas e usuários, tornou-se uma necessidade primária para conhecer novos sons, outras musicalidades e, claro, reverter o peso econômico. Afinal, não é todo mundo que pode resistir a comprar um CD por R$ 30,00 enquanto, na esquina, o mesmo conteúdo musical é vendido a R$ 5,00.

Segundo dados do Ibope NetRatings, só em novembro do ano passado, mais de 2,5 milhões de brasileiros participaram de trocas de arquivos em programas P2P. O mais acessado foi o eMule, com 1,2 milhões de internautas. O volume de downloads começa a preocupar a Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), que vai observar o comportamento do internauta brasileiro nas redes de troca.

A postura da ABPD já preocupa os internautas. Para a estudante de Direito Carolina Medeiros, se não fosse o MP3, ela não conheceria metade das bandas que gosta. “Já cheguei a viajar pelo mundo para assistir a shows de gente que conheci graças ao MP3, mas não tenho o hábito de comprar CDs”, admite.

Para o músico Haymone Neto, a questão é ainda mais simples. “Acho que trocar músicas pela internet não é pirataria. Eu não estou vendendo os discos, muito menos ganhando com isso, apenas compartilho a música que gosto com meus amigos. A pirataria de verdade é feita por quadrilhas internacionais. Eu só baixo música e disponibilizo música, assim como eu compro discos, empresto discos ou pego um livro na biblioteca sem pagar e não é legal, dentro da lei?”, questiona.

O advogado Ludovino Lopes, especializado em direito digital, esclarece que uma decisão judicial contrária ao usuário depende de uma tecnologia que seja capaz de gerar uma prova pericial de natureza digital. “Questões como a privacidade do internauta ou se ele efetivamente sabia que a música baixada era protegida por copyright devem ser respeitadas. Apenas com um advento tecnológico que permita essas regulamentações é possível avançarmos na área jurídica. Sem esse amparo, a lei fica morta, pois dúvidas podem ser levantadas no processo e em caso de dúvida o juiz sempre decidirá a favor do réu”, adianta.

Contra burguês, baixe MP3 –

Pela lógica de acionar a Justiça contra usuários domésticos, quem usufrui de programas como Kazaa, Grokster e eMule passa a receber o mesmo tratamento de quem rouba um supermercado. Para alguns, é um exagero. Para outros, a lógica está correta e tem de ser assim mesmo. O interessante é que, com isso, as gravadoras vão processar os próprios consumidores que a sustentam. Quem for processado, terá que pagar uma indenização a elas. Ninguém, em sã consciência, voltará a comprar um CD distribuído pela mesma gravadora.

Aos poucos, a indústria mina uma série de possibilidades para fazer bom uso de novas tecnologias e uma gama de possibilidades interessantes para gerar receita. Ninguém, também em sã consciência, opta por um produto pirata porque quer. Sobretudo no Brasil, não é – nunca foi – uma questão de opção.

Até hoje, o consumidor sempre esteve em desvantagem em relação à indústria. Só pode comprar o que a indústria local oferece e o que as lojas empurram. Pior, com preços ditados de cima. Novamente, não é questão de opção. Da mesma forma que o computador nos libertou da máquina de escrever (quanto trabalho era corrigir um erro de português!) e o CD nos libertou da fita K7, o MP3 e a internet estão aí para dar ao consumidor algo que não estamos acostumados: opção.

Apenas um caso de prisão no Brasil –

Em agosto de 2003, a polícia do Paraná entrou na casa do curitibano Alvir Reichert Junior e o prendeu, sob acusação de que o mesmo trocava e vendia MP3 pela internet. A prisão ocorreu após uma investigação da Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos (APDIF), hoje vinculada à ABPD. Reichert teve dois computadores apreendidos, além de um gravador de CD e vários discos piratas. Uma estrutura completamente amadora. Igual a que muita gente tem em casa por diversão. A ação policial ocorreu logo pela manhã cedo, diante de duas filhas pequenas incrédulas e aos prantos, segundo contou Reichert à imprensa, na época.

De acordo com Valdemar Ribeiro, então diretor da APDIF, tratou-se da primeira ação efetiva do gênero, depois de quatro meses de investigação. Procurados pela Folha, os advogados não revelam maiores detalhes para não atrapalhar o inquérito, mas mostraram o processo à reportagem. Na época, para o advogado especializado em Direito da Informática Omar Kaminski, as autoridades deviam se preocupar em ir atrás dos grandes fraudadores. “Está havendo mobilização de força policial e imposição privativas de liberdade para a proteção de interesses corporativos, deixando tantos outros para terceiro plano. A pirataria fonográfica industrial, em larga escala, é que traz prejuízos ao país com a sonegação de impostos”, critica Kaminski.

Musicalidade pernambucana sob ameaça –

O cenário musical de Pernambuco, não à toa, é reconhecido internacionalmente. Ícones de uma revolução nada silenciosa, vários artistas locais despontaram em gravadoras e fazem sucesso com o público a partir de ações inusitadas, como é o caso do Mombojó, que coloca as músicas dos CDs disponíveis em MP3 na internet, de graça. A Folha conversou com Silvério Pessoa e DJ Dolores Hélder Aragão) sobre a postura da ABPD. Ambos são donos de um iPod, antenados na tecnologia de música digital e, curiosamente, confessam serem dependentes da liberdade que o MP3 proporciona ao artista. Confira a opinião de ambos.

SILVÉRIO PESSOA
A possibilidade de ser processado por baixar música é absurda. Meus melhores amigos são o meu Macintosh e o meu iPod, onde tenho mais de cinco mil arquivos de MP3 e vivo conectado. Como usuário, acho um anacronismo a possibilidade de um processo cair nas nossas costas. Não faz sentido as indústrias fonográficas remarem contra a maré. Elas precisam entender que a troca de arquivos na rede é um caminho sem volta. Eu mesmo vou colocar todas as faixas do meu CD na internet, na boa. Qual vai ser o critério da ABPD para processar os usuários? Não entendo como alguém pode ser preso porque baixou um disco do Marcelo D2 ou porque fez o download de músicas da Madonna. Sou totalmente a favor, não só do MP3, mas também das cópias. O artista tem que investir nos shows, nas apresentações, que é quando realmente se ganha dinheiro. Não vejo problemas com os piratas. Ficarei realizado como artista quando encontrar um disco meu para vender nessas barraquinhas de CD pirateados. Hoje, os próprios artistas não se opõem ao MP3. Muitos, inclusive, já utilizam o formato como forma de divulgação. Não vejo razão alguma para combater um formato que já está consolidado, que já faz parte da cultura dos jovens.

DJ DOLORES
A situação é tão absurda que vivemos em um estado de desobediência civil instintiva. Quem pode barrar uma possibilidade tão boa de se informar, trocar idéias com o resto do mundo? Milhões de pessoas agora mesmo estão trocando arquivos através do soulseek, do kazaa, emule etc. Quem tem que mudar é a indústria que não encara o fato de que estamos numa era digital e um disco metálico em embalagem de plástico já não é um produto, digamos assim, tão atraente. O conteúdo musical não precisa mais de um suporte físico. Quando a gente vê o benefício que a internet proporciona para quem tem a sorte de ter acesso a um computador e a uma linha telefônica, não dá nenhuma vontade de voltar atrás no passado. Os softwares P2P são um avanço para humanidade, estimulam a curiosidade. Seria injusto fechar essas portas, principalmente num país economicamente deficiente como o Brasil. Sabe o que é pior? Nós, os artistas, em sua grande maioria, não nos importamos que o moleque baixe um, dois, três discos ou mesmo a nossa discografia completa. Quem se importa é o executivo de gravadora do alto de sua ganância. Participei do CD de lançamento do Creative Commons. No mesmo CD, tinha David Byrne, Beastie Boys, Matmus, Gilberto Gil, Thievery Corporation… todos artistas do primeiro time da indústria que não se importam em liberar faixas em MP3.

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