TRANSPARÊNCIA // Governo evita regulamentar lei que abre informações do orçamento
Paulo Rebêlo
Diario de Pernambuco – 17.fev.2008
Gastos de governo – qualquer governo – são crescentes a cada ano. E quanto maior a despesa, maior é a dificuldade de fiscalizar a correta aplicação do dinheiro público. Se os próprios políticos encontram dificuldade em supervisionar, a situação é ainda pior para eleitores e a sociedade em geral. As denúncias sobre o uso de cartões corporativos para custeio de despesas fantasmas ou pessoais reafirmaram não apenas o legado de pouca transparência nas contas públicas, mas, sobretudo, a dificuldade de acesso às informações públicas.
No site Portal da Transparência, mantido pela Controladoria Geral da União (CGU) e considerado a “mais completa ferramenta” aberta ao cidadão comum, as lacunas de fiscalização são grandes e os dados disponíveis deixam a desejar. Um levantamento do Instituto A Voz do Cidadão, realizado a pedido do Diario, mostrou que as contas reveladas pela CGU no ano-base 2007 representam apenas 10% do total de gastos governamentais. E dentro deste escopo, há uma série de furos técnicos, como é o caso dos saques em dinheiro vivo, como mostra a imagem ao lado.
Antes de ser um direito da sociedade, o acesso às informações públicas deveria ser um dever dos órgãos públicos, conforme a Constituição Federal de 1988 prevê em seu artigo 5º, inciso 33: “[…] todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade […]”.
O problema é a inexistência da lei específica. Até hoje, passados vinte anos da promulgação da Carta Magna, a lei de direito de acesso às informações públicas não foi regulamentada no Brasil. Não há, hoje, um método ou caminho institucional que permita mais facilidade ao cidadão de receber documentos estatais. Questões simples, como o valor gasto em diárias, são fornecidos apenas de acordo com o interesse do governante ou, em alguns casos isolados, a partir de pressão da imprensa.
Internet – O maior trunfo do cidadão continua sendo a internet, uma benesse pouco popular no país. Isto é, desde que se tenha muita paciência para passar horas navegando por seções e subseções. No site do Ministério da Fazenda, o cidadão paciente pode fazer um comparativo com a arrecadação da União do ano passado e anos anteriores, por exemplo. No site da Receita Federal, também há uma série de consultas, as quais se tornam ainda melhor de posse de um CNPJ.
No site do Fórum de Direito de Acesso, um modelo-padrão de requerimento pode ser utilizado para enviar aos governos locais uma solicitação formal. Entretanto, os indicadores mais recentes revelam que, excetuando os políticos (quando estão na oposição), o número de solicitações formais por parte do eleitorado é incipiente. “Apenas em diárias, a União gastou R$ 612 milhões em 2007. Como isso foi gasto, ninguém sabe”, questiona o presidente do Instituto Voz do Cidadão, Jorge Maranhão.
O exemplo norte-americano
Vários países possuem leis de acesso a informações públicas, inclusive, nações consideradas “menos desenvolvidas” do que o Brasil, como é o caso da África do Sul e da Lituânia. Estes dois últimos regulamentaram a lei de acesso há pouco tempo. Além do Reino Unido, o caso mais conhecido é o dos Estados Unidos, com o FoIA (Freedom of Information Act), de 1966. Em 2003, o governo americano registrou 3,2 milhões de pedidos baseados no FoIA, dos quais uma mínima parte teve origem na imprensa. O número parece grande, mas financeiramente – o calo de qualquer governo – também mostrou-se insignificante. O total de pedidos custou ao governo US$ 323 milhões, o que representa pouco mais de US$ 1 (um dólar) por habitante.
O presidente do Instituto A Voz do Cidadão, Jorge Maranhão, reclama da falta de transparência por conta de valores estratosféricos gastos pelo governo, mas também questiona a falta de responsabilidade política no Brasil. “Falta cidadania. Não é bolsa-família ou esmola que vai gerar cidadania. Que históriaé essa de verba secreta, de questões de segurança nacional? Ou se abre ou não se abre”, brada Maranhão. Para ele, o uso irregular dos cartões corporativos é apenas a ponta do iceberg.
Na América Latina, países como México, Peru e até mesmo a Colômbia já regulamentaram ou se encontram em processo de implementação de uma lei de acesso à informação. Evidentemente, não são 100% transparentes, mas dão ao cidadão mais ferramentas e celeridade na obtenção de documentos estatais pela sociedade. No Brasil, é preciso recorrer a outras leis ou ações civis públicas, um processo restrito a poucos.
Quando a transparência incomoda
A carência de leis que possibilitem mais transparência nas contas públicas caminha de mãos dadas com o excesso de decretos e legislações para sigilo de documentos públicos. A constatação é o carro-chefe do Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, que desde 2003 batalha pela regulamentação de uma lei específica de acesso. Sem ela, até mesmo o reduto político se torna refém da boa vontade dos governantes.
Em novembro do ano passado, o prefeito João Paulo e uma comitiva da Prefeitura do Recife passaram vinte dias em viagem pela Ásia, com tudo pago pelos cofres públicos. Viajaram em missão oficial, para fechar parcerias, segundo os porta-vozes da prefeitura e o próprio João Paulo. Até hoje, a oposição cobra da prefeitura mais detalhes dos gastos e das parcerias em questão. Para a sociedade, ninguém soube quanto foi gasto em diárias e para quantas pessoas, além dos frutos colhidos na Ásia que possam beneficiar o Recife. Na mesma época, o governador Eduardo Campos passou dez dias em viagem pelos Estados Unidos e Japão. Sua assessoria divulgava, diariamente, as atividades do governador e as parcerias firmadas. Não houve barulho na oposição da Assembléia Legislativa e, como de praxe, os gastos não foram divulgados publicamente.
Vários são os exemplos. No Ceará, o governador Cid Gomes (PSB) é pressionado pela oposição e pela imprensa sobre o motivo de ter fretado um avião para uma viagem de 10 dias pela Europa, oficialmente a trabalho, em vez de utilizar uma aeronave de carreira. Questionado, adotou o discurso do presidente Lula quando indagado sobre o uso dos cartões corporativos: a tradição. “A gente apenas manteve o que já vinha sendo feito há 20 anos”, disse Cid Gomes ao jornal cearense O Povo.
O governador do Ceará também não respondeu à imprensa local quantas pessoas fizeram parte da comitiva. Os ex-governadores Tasso Jereissati (1987/1990, 1995/2002) e Lúcio Alcântara (2003/2006), por meio de suas respectivas assessorias, disseram que não iriam comentar as declarações de Cid Gomes. Em São Paulo, atéo início da semana, o governador José Serra (PSDB) também não permitia a publicação das despesas efetuadas no cartão corporativo. Com as denúncias, algumas contas foram abertas.
A partir de tais premissas, fica difícil levar a sério a mensagem oficial da Controladoria Geral da União (CGU), estampada no site Portal da Transparência, de que “a participação e o controle social não são apenas um direito de cada cidadão, mas, também, um dever”. O aviso segue, realçando a importância “que todos fiscalizem os recursos federais repassados a estados e municípios, como os recursos para a merenda escolar, para o Bolsa Família, para a saúde e para a erradicação do trabalho infantil, entre outros. Cabe a cada cidadão a tarefa de fiscalizar e acompanhar os gastos do governo federal”. Como fazer isso, contudo, é a grande caixa de pandora.
Bem público, uso privado
Pesquisadores e estudiosos costumam ser unânimes em uma questão: a apropriação de bens públicos para fins particulares é uma epidemia nacional. Pior, trata-se de uma manifestação de uma doença ainda mais grave, que é a falta de controle do Estado-Nação, submerso na escassez de fiscalização e de informações públicas. A própria adoção dos cartões corporativos pela União, como recurso fiscal, não seria maléfico. O uso irregular e a falta de fiscalização é que sim. Economistas e auditores fiscais ouvidos pelo Diario durante a semana foram enfáticos ao apontar a maior facilidade de fiscalizar e auditar as contas públicas com o advento dos cartões magnéticos, mas o descontrole sobre despesas e saques transformaram um recurso legal em escândalo.
Para o cientista social Ailton Vieira da Cunha, a melhor definição do atual descontrole político reside no patrimonialismo. Ou seja, o comportamento político que não distingue os espaços do bem público e do bem privado. “A postura dos políticos brasileiros impede tanto o avanço da democracia como o fortalecimento da sociedade civil”, conclui. Ao mesmo tempo, Cunha acredita que o comportamento do servidor que usa indevidamente as benesses do cargo para fins particulares não fica atrás na escala de valores ou de desvalores.
Cunha esclarece. “O que é do governo pertence aos cidadãos; em dado espaço de tempo, o governante administra aquilo que é de todos, aquilo que é coisa pública. Portanto, a participação do cidadão na esfera pública em defesa do bem público é sinônimo de cidadania ativa, cultura cívica e democracia”, define, em um fator caracterizado pelo cientista como a “pedra angular do avanço da democracia”. Para ele, a cultura é herança dos governos absolutistas e, infelizmente, há pouca luz no fim do túnel e pouco espaço para a “pedra angular” no Brasil.