Longa estrada para a interiorização da cultura

flip156Gestão pública // Equipes da Fundarpe têm percorrido o Estado em mais uma tentativa de ampliar a política cultural

Paulo Rebêlo
Diario de Pernambuco
13.abril.2009

Parece um túnel do tempo. Você fecha os olhos e escuta técnicos do governo e representantes de grupos e associações culturais debatendo as dificuldades de comunicação, de captação de recursos, de organização e sobre a burocracia inerente às gestões públicas.

As reuniões levam horas, em lugares e cidades diferentes. Terminam com um sem número de propostas e promessas. O tempo passa, você abre os olhos e vê que os técnicos mudaram, a cidade é outra, mas as discussões, os argumentos e as promessas parecem idênticas – embora a roupagem e os termos sejam diferentes.

Equipes da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), órgão vinculado ao governo estadual, tem percorrido todo o Estado em (mais) uma tentativa de reverter os recorrentes problemas de diálogo e proporcionar uma política cultural mais ampla. Uma política pela qual grupos fora dos grandes eixos urbanos possam ter acesso mais simples ao governo e, sobretudo, participar de editais e apresentar projetos sem intermediários.

O encontro mais recente ocorreu em Goiana (63 km do Recife) nesta primeira semana de abril, durante o encerramento da primeira etapa do Festival Pernambuco Nação Cultural. O festival é uma das “novidades” da atual gestão e inclui oficinas de capacitação, reuniões e os sempre necessários shows em praça pública.

Representantes de pelo menos dez pontos de cultura da Zona da Mata Norte se reuniram com técnicos do Programa Mais Cultura para elaborar novas estratégias e discutir procedimentos. A próxima cidade a receber o festival será São José do Belmonte (a 479 km do Recife), Sertão Central, entre 25 e 31 de maio. Até o final do ano, a promessa da Fundarpe é realizar o evento em todas as doze regiões de desenvolvimento.

A Fundarpe segue as diretrizes do Ministério da Cultura (Minc) em garantir a ampliação dos chamados Pontos de Cultura. É um processo a envolver, além de discussão e capacitação, a abertura de um “novo” canal de comunicação entre as partes, onde a internet é peça fundamental. E também curiosa, diante da também recorrente exclusão digital no interior. Apesar de ser uma variável que transcende a capacidade da Fundarpe, serve para comprovar, ainda mais, a urgência das chamadas políticas públicas integradas – um chavão bastante propagado, porém pouco aplicado.

A direção da Fundarpe garante ter percorrido 4.500 km em 2008. Foram 90 cidades visitadas e com grupos capacitados a participar do edital para criação de 120 novos pontos de cultura nas 12 regiões. Antes do edital, eram apenas 36 pontos. Em valores, são R$ 9,5 milhões para a seleção dos novos pontos e os selecionados recebem um aporte de até R$ 180 mil em três parcelas anuais para a execução das ações estabelecidas pelo convênio. Na prática, o valor anual para cada ponto é bem mais modesto. Depende do método como cada proponente elabora projetos detalhando necessidades, custos, atividades, fins pedagógicos e outras exigências.

Via de regra, os pontos de cultura devem desempenhar um papel articulador entre as ações das comunidades que representam e o estado. Uma espécie de referência para outras entidades e grupos, inclusive pelo caráter sem fins lucrativos e com atuação autônoma. São formados por pessoas com diferentes empregos, expectativas e, claro, interesses diversos. No jargão da área, “protagonistas sociais”.

As áreas de atuação são bem flexíveis e passam por audiovisual, radiodifusão, gestão e formação, expressões e manifestações, cultura digital etc. A cada conquista – edital contemplado, projeto aprovado ou o simples reconhecimento – surgem problemas que tantos outros já enfrentaram. Entre eles, a burocracia (e atraso) na liberação dos recursos e a não-continuidade das ações, seja por mudanças de prioridades ou troca de governo.

As propostas da Fundarpe perseguem um conceito bem mais amplo, historicamente complexo e dotado de forte resistência: a consolidação de ações a longo prazo independentes da boa vontade de autoridades ou de eventuais interesses particulares de pequenos grupos. A criação de novos pontos de cultura e suas subsequentes consolidações formam apenas o primeiro passo de uma longa estrada de mudanças.

E as curvas estão em vários níveis de governo. Na Prefeitura do Recife, apesar das dificuldades e derrapadas aparentes, há o recente Plano Municipal da Cultura (saiba mais detalhes no Diario de 5 de abril) e, no governo federal, a revisão da Lei Rouanet (Diario de 7 de abril). Se a busca por ações a longo prazo, integradas e descentralizadas, irá finalmente engrenar, só o tempo haverá de mostrar. Hoje, fica a esperança de que não seja o mesmo túnel do primeiro parágrafo desta reportagem.

Ponto de cultura, um reconhecimento político?

flip157Por uma série de fatores nem sempre fáceis de averiguar, muitas vezes o aporte financeiro do estado é a única saída para associações e pontos de cultura no interior. Francisco Irineu, o Zinho, é fundador do Grupo Aláfia em Goiana e propõe um debate que vá além da simples busca financeira. “É claro que sem dinheiro ninguém faz nada, mas entendo o ponto de cultura muito mais como um reconhecimento político, antes mesmo da ajuda financeira”, explica Zinho.

Fundado há cinco anos para promover a cultura negra e popular, somente agora o Aláfia foi classificado como ponto de cultura, após participar e ser contemplado no edital lançado ano passado pela Fundarpe. O Aláfia, contudo, é exceção. Relativamente bem estruturado, há cinco anos promove atividades e apresentações todo segundo domingo do mês em Goiana. “O pessoal [da Fundarpe] parece comprometido e estamos confiantes no diálogo, mas a dificuldade de comunicação com o estado sempre foi um problema e não é de agora”, admite Zinho, após a reunião entre técnicos daFundarpe e representantes de dez pontos de cultura da Mata Norte.

A fim de tentar quebrar o ceticismo, a Fundarpe aposta, principalmente, em duas frentes com resultados esperados a médio prazo: maior engajamento das equipes no interior e mais colaboração participativa entre pontos de cultura, gestores e a sociedade.

Na primeira frente, o coordenador de gestão do Programa Mais Cultura, Mauro Lira, garantiu em Goiana que o canal está aberto e o diálogo irá acontecer. “Criamos uma equipe própria de acompanhamento e coordenação para atender as demandas de vocês. Façam os projetos, nos procurem, nos telefonem, insistam”, explicou aos presentes na reunião em Goiana, pouco antes do encerramento do Festival Nação Cultural.

Apesar do modismo no termo “colaborativo”, o site do Pernambuco Nação Cultural (www.nacaocultural.pe.gov.br) quer funcionar como base para os pontos de cultura e a sociedade. Mediante um cadastro simples, é possível enviar produções artísticas próprias sem intermediários: músicas, fotografias, imagens, textos. Ainda embrionário, o site é abastecido pelos colaboradores e por uma equipe da própria Fundarpe. Duas incógnitas ainda persistem: a efetiva capacidade de divulgação (e uso) entre os pontos de cultura no interior; e a continuidade do projeto em anos vindouros.

Se de um lado há questões abertas, de outro há forte otimismo na capacitação de futuros gestores e na descoberta de novos talentos. Responsável pelo setor de Literatura na Fundarpe, o jornalista Samarone Lima precisou de apenas dois dias, em Goiana, para abrir um novo leque de oportunidades para quem frequentou sua oficina. Ele revela que muita gente envolvida com cultura, no interior, não imagina como possa captar dinheiro público por meio dos editais. “Mostramos que não é difícil, qualquer um pode concorrer e o dinheiro sai. Demos dicas para fazer projetos, soluções”, explica.

Uma das soluções – a curto prazo – é a possibilidade de ter uma nova fonte de renda a partir do aprendizado imediato. Pela primeira vez participando das oficinas daFundarpe, Pedro Ramos ministrou o curso de adereços e fantasias para um grupo de pessoas em Goiana. “O que eles aprenderam e fizeram aqui é deles, podem começar a comercializar seus próprios trabalhos”, explica, enquanto os alunos terminam de montar um apresentação de caboclinhos com os adereços confeccionados.

Há três décadas envolvido com cinema de animação, Lula Gonzaga pretende ir além das promessas governamentais. Em sua oficina de cineclubismo, ele detalha o plano de coletar os melhores trabalhos no interior para, daqui a dois anos, fazer um longa-metragem de animação genuinamente colaborativo. “Em cada oficina, sempre há dois ou três que se destacam, correm atrás, mesmo quando a gente vai embora”, explica, enquanto separa os melhores desenhos da semana para retornar ao seu estúdio em Igarassu. “Hoje tenho gente qualificada, trabalhando comigo, que surgiu a partir de oficinas no bairro de Santo Amaro, por exemplo”, comprova Gonzaga.

Expectativas renovadas no interior

Técnicos e a presidente da Fundarpe, Luciana Azevedo, comemoram a ampliação da política cultural no interior de Pernambuco. Seja pelos novos pontos de cultura ou em projetos aprovados pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura). A conquista, embora real, ainda é tímida se comparada aos números da capital.

Em todo o Estado, foram 1189 projetos apresentados à Fundarpe em 2008 – a lista dos aprovados saiu em dezembro. São exposições fotográficas, peças teatrais, livros, filmagens, capacitação etc. Das 1189, foram 230 contemplados que podem resultar em mais de 400 ações ao custo total de R$ 12 milhões.

As estatísticas oficiais, divulgadas pela Fundarpe, mostram como é aguda a defasagem no interior. De 411 ações previstas pelos projetos aprovados, 239 são destinadas às cidades da Região Metropolitana do Recife, a maioria na capital. O Sertão será contemplado com 40 ações, enquanto o Agreste com 70.

De todo modo, a conta é vista com bons olhos pela atual presidente da Fundarpe, Luciana Azevedo. “Agente reconhece que ainda é pouco, mas este ano tivemos 40% dos projetos (analisados) vindos do interior, um recorde”, garantiu Azevedo, em dezembro, ao comentar sobre as propostas de interiorização cultural.

Os 230 projetos selecionados estão distribuídos entre 185 produtores que apresentaram propostas. Destes, 116 (62,7%) são novatos, recém-cadastrados na base de dados da Fundarpe. Cleonice Maria, uma das produtoras novatas, reforça a idéia de que no interior o problema é maior do que a simples burocracia administrativa. “Há falta de informação mesmo, por aqui tudo demora a chegar e nem sempre as pessoas estão interessadas em ir atrás de oportunidades”, explica, confiante de que o cenário em curso está mudando para melhor.

Cleonice é uma das responsáveis pelo Cabras de Lampião. Além de ser uma exceção à regra, o grupo foi o único a ter quatro projetos aprovados ao mesmo tempo – e uma das provas de que a interiorização, embora difícil por natureza, possa render frutos culturalmente (e financeiramente) viáveis.

Agora transformado em fundação cultural e com recursos do Banco do Nordeste (Programa BNB de Cultura 2009), o Cabras de Lampião, a partir do próximo mês de maio o grupo parte para mais um ousado projeto: levar trupe de artistas para promover cultura e arte em comunidades minúsculas, desconhecidas da mídia e da população metropolitana. Os distritos de Varzinha, Bernardo Vieira, Caiçarinha da Penha, São João do Barro Vermelho, Água Branca, Santa Rita, Logradouro e Fazenda Saco vão receber oficinas de dança, teatro, artesanato e filmes na programação que segue até agosto.

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