Memórias de sanduíche americano do sul

Paulo Rebêlo | janeiro 2022


Aos 6 anos de idade, eu já estava acostumado com o excesso de gestos que a mãe fazia ao conversar, mas naquele dia eu tive muita pena da Simone, minha primeira professora de inglês.

Simone também era a diretora da escolinha de inglês. Decidia quem entrava e quem ficava para a próxima seleção de turma no ano seguinte.

Quando a criatura disse que o curso só aceitava crianças a partir dos 7 anos e que já tivessem sido alfabetizadas, na mesma hora eu soube que vinha chumbo grosso para cima dela.

Depois de muitas braçadas gestuais e argumentativas da mãe, concordaram que o guri de óculos fundo de garrafa e bermudão não daria problemas para a professora, não atrasaria os colegas em sala e iria entregar todas as tarefas em dia e completas.

Mesmo sendo meio analfabeto.

Até hoje, eu nunca soube se a Simone aceitou aquela exceção por pena de mim ou por medo de levar uma patada de mãe.

X-EGG SEM O CHEESE

Apesar de meio analfabeto, eu tinha alguma consciência que essas aulas iam me ajudar no futuro, mas pensava beeemm no futuro mesmo, quando eu me tornasse um adulto frustrado em busca de um emprego chato.

Não sei exatamente como, meus pais sabiam que o inglês seria a chave-mestra para abrir um leque de conhecimento e experiência que eu viria a ter. E isso me deixava frustrado já antes do tempo porque, ao menos no meu parco convívio social infantil, eu não conhecia mais ninguém que estudava inglês. Com quem eu ia conversar em gringo? Foi quando lembrei que eu já não gostava muito de conversar em português, por que eu ia querer conversar em outra língua?

Eles acertaram em cheio. Depois, desconfiei se foi um acerto mesmo. Acho que a maior parte do dinheiro que meus pais gastavam com livros de inglês (e informática) era retirado da feira do mês. Porque em casa a gente continuava comendo pão com ovo todo dia e economizando palito de fósforo.

Anos depois, ao entrar no ginásio, começaram as aulas regulares de inglês no colégio e foi quando muitos outros pais e mães correram para matricular os mancebos nesses cursos que agora pipocavam em toda esquina. Tinha mais curso de inglês no Brasil de ontem do que tem hambúrguer artesanal no Brasil de hoje.

TO BE or NOT TO BE

Nunca gostei muito de estudar, mas gostava muito de ler. No ginásio, eu já lia os livros em inglês do mesmo jeito que lia em português. Mas ao fazer isso, parecia um extraterrestre. Morria de vergonha e não levava os livros para o colégio e nem para lugar algum.

Alguns poucos amigos sabiam do meu pequeno segredo por causa dos fliperamas da rua. Não existia nada traduzido na época, então eu explicava uma coisa ou outra que aparecia na tela e isso ajudava um pouco nas partidas ou, no mínimo, fazia a gente entender as historinhas antes de começar a dar murro no joystick.

Depois que apareceram os primeiros consoles de videogames no mercado, o único jeito de conseguir jogar RPG era lendo e interpretando os diálogos em inglês. Até hoje, quem joga RPG ainda é meio extraterrestre, né?

Larguei essa vida de RPG, mas mantive o hábito de jogos de tiro: metralhando e fuzilando outros seres extraterrestres. Acho que Paulo Freire já explicou isso aí.

Com os primeiros computadores chegando ao Brasil, foi bem parecido. Os comandos naquela tela preta de caracteres verdes, aparentemente sobrenaturais, nada mais eram do que siglas ou abreviações do inglês. Até hoje é muito assim, aliás. Quase todas as linguagens de programação são pensadas e hierarquizadas em inglês.

Lembro de um grande amigo da época, o Bira, que detestava as aulas de inglês no ginásio e depois piorou no científico. Ele sempre fazia todo mundo rir quando dizia: quando eu tiver um filho, vou matricular o pirralha no curso de inglês no mesmo dia que ele nascer. Vai saber o verbo TO BE antes de ser batizado!

Quando a gente se esbarrou pelo Recife, quase 30 anos depois disso, ele me contou que teve três filhos. Perguntei se já estavam todos batizados, mas ele não entendeu a piada e eu fiquei com vergonha de lembrar a história.

Mas espero que ele tenha cumprido a promessa.

Foi somente na faculdade quando comecei a me dar conta da quantidade de plágios e cópias descaradas sem atribuição, nos livros nacionais e nas revistas de notícias, de conteúdo em inglês que às vezes tem décadas de publicado e aqui parecia novidade ou conhecimento genuíno.

Comecei a achar que, nas décadas adiante, aprender inglês não seria nada diferente, não seria um extra, mas uma necessidade latente para acompanhar o ritmo do mundo. Seria tão naturalizado nas crianças e adolescentes a ponto de, finalmente, a gente parar de se sentir extraterrestre.

Não sei o que aconteceu ou quando tudo isso desandou. Quase não existe mais curso de inglês porque não tem demanda. Nos últimos vinte anos, parece que ninguém quer aprender ou conhecer mais nada.

E aí você escuta jovens e adultos, até mesmo tiozinhos da minha geração, falarem em meditação, coach, alinhamento de chácra, dieta funcional, terapias holísticas, água ungida, espíritos de todos os tipos, o escambau, mas têm medo de tirar um passaporte porque acham que vão morrer de fome sem conseguir pedir um hot dog na gringolândia.

Encontro regularmente, em reuniões de trabalho, muita gente classe média, muita gente rica mesmo, letrada nas melhores universidades, que me perguntam: por que vamos estudar inglês se o Netflix passa a mesma coisa dublado em português?

Os jogos também estão traduzidos e existe o Google Tradutor de graça na internet e no telefone.

Talvez a senhora minha mãe, que tão bem previu o futuro no passado, poderia ter alguma resposta. Porque eu não tenho.

Quando encontro jovens adultos assim, minha frustração de criança volta em dobro.

Porque eles têm todo o tempo do mundo pela frente, o tempo que eu tinha quando criança, com a diferença enorme que hoje eles não estão comendo pão com ovo e economizando palito de fósforo para comprar livro. Pelo contrário. Tem curso de graça na internet, tem aulas em vídeo no Youtube, tem videoconferência com gringo, tem livros e e-books gratuitos. Tudo tão acessível e tão inexistente pouco tempo atrás.

Para felicidade da senhora mãe, que escapa de ver o filho preso, a idade me trouxe um pouco de parcimônia para me controlar e não quebrar na porrada todos os dentes de quem volta de viagem espantado porque lá fora ninguém fala “ecs burguer”. E que só no Brasil se usa o termo x-burguer.

Meu filho, minha filha, você precisa voltar para o MOBRAL e não é por causa de nenhum inglês, não, é de português mesmo.


FOTO EM DESTAQUE
Lanchonete Fat Belly’s.
Portsmouth, New Hampshire (EUA).
Outubro/2013.
Fujifilm x100s | 23mm | 1/640 sec | f/5.6 | ISO 200

5 Comments Memórias de sanduíche americano do sul

  1. Daniella Baía

    Senti tudo. Ironia, humor, nostalgia. E a crítica bateu aqui. Porque é exatamente assim. Não sou tão jovem quanto essa galerinha. Mas quero aprender o inglês já faz tempo. Mas me escondo no conforto tolo do Google tradutor e da legenda/dublagem. Até quando isso. Amo a tecnologia, mas a gente também faz críticas a quem ama, ela nos deixou preguiçosos.

    Gosto dos teus textos. Acho que posso dizer que gosto de você. Mas não tenho muita certeza.

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  2. Isabel Machado

    Quanto tempo e quanta saudade de ler suas crônicas impecáveis. Pq são divertidas, inteligentes e com aquele propósito de fazer a gente voltar no tempo e fazer mil perguntas. Pq eu comecei tantos cursos de inglês e nunca terminei? E como sua mãe, eu sabia que era necessário, mas não me via indo aos EUA, odiava a Disney e hambúrguer. Kkkk Menino, saudades! E parabéns, como sempre!

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  3. Antonio

    A realidade hoje é que a maioria das pessoas não gosta de aprender, gosta sim de compiar o que as outras fais porque é mas fácil compiar do quer aprender.

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