A tecnologia vai salvar a vida dos netos que não terei

Paulo Rebêlo | maio 2021


Curioso como nossa percepção de envelhecimento só funciona para os outros e nunca para a gente. Entre colegas mais próximos, às vezes comentamos o quanto uma mulher é bonita apesar de já ser meio coroa. Só que a coroa é mais nova que a gente. Por outras vezes falamos que o amigo passou dos 50, como se estivesse envelhecido; sem observar que estamos quase cruzando essa esquina daqui a um piscar de olhos ou a uma Copa do Mundo.

A senhorinha dona da quitanda, aqui no bairro, não cansa de fazer a mesma pergunta retórica – “no prédio novo, né?” – toda vez que passo lá na hora do almoço e faço um pedido para entrega. Meu normal seria ignorar ou responder “sim, novíssimo, recém construído, me mudei ontem“, mas eu estava um pouco menos rabugento nesse dia e retruquei de volta:

— Tia, esse prédio está completando oito anos, até quando ele vai ser novo, pelo amor de jesus sangue de cristo tem poder amém?

A gente riu junto e na semana seguinte ela fez a mesma pergunta ignóbil.

Talvez o tempo na cabeça dela seja tão zoado quanto o meu, mas toda vez que a criatura pergunta “no prédio novo, né?” fico a semana inteira pensando que voltei para Recife para passar uma chuva por uns dois anos até acabar as eleições de 2016 e, quando abri os olhos, eis que são quase oito anos. Quando foi que isso aconteceu que eu não vi e ninguém avisou?

Eu olho para o calendário e configuro mentalmente que próximo ano vou comprar cigarros de novo e sumir do mapa em lugar distante, gélido e desconhecido, mas os meses vão passando e continuo tendo coisas para fazer em Denver que parecem nunca terminar.

Quando encontro meus pais, percebo que lembro deles vividamente desde quando eu era guri, tento colocar lado a lado a imagem na minha cabeça e não vejo diferença entre eles hoje e eles ontem. Parecem exatamente as mesmas pessoas. Com o agravante que meu pai tem mais cabelos do que eu e, anos atrás num restaurante na beira da estrada, uma desgraçada desalmada perguntou se éramos irmãos.

Percebo com algum orgulho, talvez muito orgulho, que minha vida não tem absolutamente nada que contribua com o mundo ou com as pessoas, não devo mais nem um real ao Banco do Brasil, o único pertence em meu nome no Imposto de Renda ainda é um carro bom de estrada que funciona como terapia, nenhum ser vivo depende de mim para sobreviver, nem mesmo as mariposas aladas que me visitam, aprendi a não ter mais vínculos emocionais excludentes ou dependentes, posso desaparecer do planeta com a consciência tranquila de que não deixei nenhum herdeiro ou boleto, nada do que eu faço profissionalmente é impossível de ser feito por outras milhares de pessoas, não tenho nenhum conhecimento diferenciado ou inédito, nenhum cliente vai falir por minha causa, enfim, depois de muito buscar e calcular acho que consegui chegar onde queria: um substantivo sinônimo de normal absoluto para o mundo e equivalente à insignificância máxima num contexto mais amplo de universo.

Então hoje vivo muito tranquilo comigo mesmo e em paz total e absoluta para quando o xeque-mate da Morte for engatado no tabuleiro, mas ainda perco noites de sono pensando o quanto é injusto tantas pessoas que eu gosto irem embora — não por eu gostar delas, mas por elas fazerem tão bem ao mundo e às outras pessoas, por serem necessárias e festejadas.

Quando eu era guri, olhava para meus avós que eram os “velhos” da família e não me preocupava com a velhice deles porque tinha certeza que o avanço da tecnologia e da medicina seria o suficiente para fazer com que eles ainda vivessem por muitas décadas, passariam com facilidade dos 100 anos, talvez 120 anos, sei lá quantos anos, apenas o suficiente para que eu não precisasse presenciar a decrepitude física e mental que a velhice avançada traz. Fui fazer as contas e percebi que naquela época eles tinham apenas um pouco mais de tempo de vida do que tenho hoje.

A velhice veio mesmo, a Morte também, como de costume eu estava errado naquelas previsões; mas agora era outra época, certamente meus pais conseguiriam usufruir das maravilhas da ciência e tecnologia, sem doenças repentinas, sem quedas, sem inflamações, sem células mortas, sem radicais livres apodrecendo, sem neurônios desaparecendo.

Claro que eu estava errado de novo, pois nem eles e nem eu vamos estar aqui para usufruir dessas benesses que a ciência vai trazer e a gente espera há tantas décadas, provavelmente porque estamos muito ocupados discutindo se o planeta é redondo ou é plano, se vacinas são eficazes ou se contêm um chip chinês que vai controlar a mente das pessoas, se o Brasil tem salvação.

Meus avós eram crianças e o Brasil era o país do futuro, eu cresci lendo a mesma coisa e você provavelmente também, hoje estamos todos pareados na amizade com a foice da Morte e continuamos ouvindo que somos o país do futuro, a diferença agora é ter a certeza que esse futuro não é nosso presente porque nunca foi nem o nosso passado.

Resta-me acreditar que seja o futuro dos netos que não vou ter.

Se for mesmo, espero que inventem um gmail chico xavier, um whatsapp espírita, alguma tralha qualquer para se comunicar comigo do além apenas para dizer: chegamos, conseguimos, concluímos, a tecnologia finalmente está salvando as pessoas que a gente ama a partir de agora, nada mais de células mortas ou inflamadas, vencemos a velhice e podemos transferir todo nosso conhecimento e experiência no cérebro para outro corpo, igualzinho você espera desde 1989 quando leu Ghost in the Shell.

Tudo bem se esse outro corpo for careca e barrigudo, tentem apenas diminuir um pouco o tamanho das bochechas, por favor. Grato.


Foto em destaque
Mascotes do Freshippo, o supermercado do Alibaba.
Shanghai, China. Nov/2018.
iPhone XS | f/2.4 | 1/100s |  ISO 80

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