Quando me senti um Totoro de estimação na Coréia

Paulo Rebêlo | 17.janeiro.2021


Quando pisei na Coréia do Sul, em 2005, a ficha demorou a cair. Era um sonho de criança sendo realizado: conhecer a Ásia.

Fui parar em Seul totalmente por acaso, levado pelo trabalho, para falar um pouco sobre o que eu fazia como correspondente no Brasil para um veículo coreano de jornalismo colaborativo, uma modalidade que tinha vários nomes a depender de quem respondia: jornalismo cidadão, jornalismo de código aberto, jornalismo open source, jornalismo participativo etc.

Desde criança, sempre devorei tudo que tive acesso sobre a China e o Japão. Mas foi somente no ano 2000 que descobri o cinema coreano com A Ilha (The Isle / Seom) do Kim Ki-Duk. Daí em diante, não parei mais.

No ônibus do aeroporto de Incheon até o centro de Seul, comecei a notar que algumas pessoas me olhavam de um jeito diferente. Mas eu estava tão deslumbrado que ignorei a situação.

A programação do congresso era extensa. Quando os debates e os seminários acabavam, eu desaparecia nas ruas de Seul em busca de diferentes burgogui (churrasco coreno, um prato emblemático), cervejas asiáticas e pãozinho recheado com ingredientes estranhos.

Podia ter chorado de emoção quando vi um boneco gigante do Totoro – o filme é japonês e no Brasil se chama Meu Amigo Totoro, de 1988 – mas chorei mesmo foi com o excesso absurdo de pimenta que os coreanos colocam em praticamente todas as comidas. Considero um milagre não ter voltado da Coréia com uma úlcera.

Com o deslumbre passando, comecei a perceber melhor que eu realmente estava sendo observado de um jeito estranho por algumas pessoas.

Na China é proibido, mas na Coréia do Sul você pode se sentar no banco da frente do táxi. Todos os taxistas queriam puxar assunto e apontavam para minha roupa. Eu não entendia nada, até porque eu estava vestido igual a eles.

Fora do congresso, quase ninguém falava inglês na rua. No hotel, as recepcionistas falavam um inglês que eu não entendia muito bem. Mas elas também me olhavam estranho…

No quinto dia apareceu um taxista mais velho no congresso, um senhorzinho que falava inglês de verdade porque tinha trabalhado na base militar americana, durante a Guerra da Coréia, entre 1950 e 1953.

Não sabia eu que, um ano depois dali, iria conhecer outro senhorzinho com muito a falar sobre a Guerra da Coréia, porém em Budapeste.

E ali estava o taxista apontando de novo para minhas roupas. Mas agora eu entendia um pouco a conversa.

Ele não estava apontando exatamente para minhas roupas. Ele estava apontando para meus pelos corporais: meus cabelos no braço, abaixo do pescoço e nuca.

Aparentemente, os coreanos só estavam acostumados com seres peludos quando iam para o zoológico ou quando viam o King Kong no cinema.

Agora todos os olhares estranhos começavam a fazer um pouco de sentido, embora não por completo. Afinal, eu não era o único ser vivo peludo em Seul.

As recepcionistas do hotel, as vendedoras nas lojas, os garçons, estavam todos sempre olhando para o meu pescoço e meus braços.

Nas barracas de espetinho, algumas pessoas pediam para tocar no meu braço. Eu achava que era superstição deles ou um jeito culturalmente diferente de desejar boas-vindas, embora eu estivesse me achando bem burro por não ter lido nada sobre isso e nem visto nos filmes algo parecido.

Quando finalmente entendi que meus pelos corporais eram os culpados, comecei a me sentir um pet. Uma mistura de bicho de estimação com atração de circo.

Na segunda semana em Seul, de tanto eu descer de noite para pegar cerveja e comprar espetinho, alguns funcionários do hotel começaram a me reconhecer e a perder o medo de falar inglês.

Pediram para puxar meus cabelos do antebraço para saber se eram de verdade. Uma moça perguntou se ia doer caso ela puxasse uns fios de cabelo que estavam para fora da camisa. Ela puxou. Todo mundo riu e eu ganhei umas cervejas coreanas. Tipo o amendoim que dão para os elefantes no zoológico.

Comecei a pensar seriamente em prostituir meus pelos peitorais.

Afinal, a cerveja era boa, o churrasco era bom e as coreanas são muito lindinhas.

Mas ainda achava tudo um exagero, faltava um pedaço de informação. Porque mesmo que os coreanos não sejam peludos, tem várias outras pessoas peludas no mundo e eles veem no cinema, na internet e tem os milhares de turistas americanos e europeus que visitam Seul todo ano. Vários são peludos feito eu.

Mas foi aí que veio minha grande surpresa.

Gente como a gente sem ser a gente

Quando o congresso enfim terminou, um grupo de jornalistas coreanos nos levou para uma despedida num restaurante chique de turista. Pela primeira vez, consegui comer com menos pimenta.

Na mesa gigante, notei que de vez em quando um outro grupo de coreanos falava ‘Baramui’.

Eu não entendo nada do idioma, mas graças ao cinema consigo reconhecer algumas palavras e expressões.

E eles continuaram falando ‘Baramui’ até eu criar coragem para perguntar se estavam falando do Baramui Paiteo (Baramui Fighter), um filme coreano de 2004 que se tornou grande sensação em toda a Ásia naquela época. E não é que era mesmo?

Também conhecido no mercado internacional como Fighter in the Wind, esse filme conta a história ficcionalizada do Mas Oyama (Masutatsu Ôyama). Eu já tinha lido sobre ele nos anos 80. Morreu em 1994 e, dez anos depois, saiu o filme na Coréia. Não demorou a ganhar o resto da Ásia e a chegar com legenda aos EUA no ano seguinte.

Meu parco conhecimento sobre o cinema coreano abriu a guarda daqueles jovens mancebos e assim consegui entender a informação que faltava sobre meus cabelos corporais causarem tanta estranheza.

Apontei para dois americanos que estavam no outro lado da mesa, eles também eram peludos e não estavam se sentindo um panda de laboratório.

Os coreanos do restaurante confirmaram que, de fato, americanos e europeus fazendo turismo em Seul não é novidade. E eles também já viram outros peludos além do Totoro e do King Kong.

O problema é que eles não me viam como americano ou europeu; e por causa da cor da pele, também não imaginavam ser da América do Sul, um continente quase alienígena para eles.  Só que um asiático não poderia nunca ser peludo, então tudo era muito estranho para eles, como se estivessem olhando para um asiático híbrido, um asiático falsificado.

O estranhamento, segundo aqueles jovens mancebos, é que sou baixinho feito eles, principalmente os japoneses; ando sem movimentar a cintura, feito os chineses costumam fazer; tenho os olhos meio puxados, porém diferentes dos japoneses, chineses e coreanos, ou seja, é puxado meio asiático, sem ser asiático, mas diferente dos olhos redondos ocidentais que eles esperam dos turistas.

Para piorar, eu estava sempre com uma latinha de cerveja coreana na mão, enquanto os americanos só pedem Budweiser. Eu estava comendo todas as comidas e espetinhos sem fazer a careta de nojo que os americanos fazem. E repetindo os pratos, apesar da pimenta. E perguntando onde ficam os burgogui mais baratos, em vez de perguntar onde fica o Burger King ou o Outback.

Então tudo encaixava e era familiar, menos o fato de ser peludo. Queriam saber de onde eu era e se meu braço peludo era “natural”. Quando me deixaram no hotel, veio a pá de cal: uma coisa é ver alguém peludo na tela da televisão, outra coisa é ver ao vivo, do lado da gente, comendo espetinho e tomando cerveja ruim.

Eu não sei se gostei da explicação, talvez a ignorância me fosse mais simpática. Fiquei pensando se eu não seria preso se tirasse a camisa. Acho que me levariam para o zoológico de verdade.

Não sabia eu que, meses depois dali, eu seria confundido por uma chinesa que jurou pela família dela que eu era da Mongólia.

Um peludo mongol que come burgogui.


Foto em destaque
Um Totoro gigante em loja de brinquedos.
Seul, Coréia do Sul, junho/2005.
Sony DSC-T7 | 1/13 sec | f/3,5 | ISO 125

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