Os cachorros de Bucareste

Rebêlo | maio.2019


Da minha primeira incursão na Romênia, nada me chamou mais atenção do que a quantidade de cachorros enormes e peludos pelas ruas de Bucareste. Pareciam ursos domésticos dentro de uma coleira fininha. Eram muitos. Desfilavam com seus donos.

Para minha sorte — talvez a deles também — naquele ano de 2006 as câmeras de celular eram bem ruins. Meu telefone só fazia ligação e enviava mensagem de texto. Se fosse hoje, provavelmente eu seria preso depois de alguém denunciar um maluco estrangeiro querendo fazer selfie com os cachorros no meio da rua.

Uma semana entre cervejas Silvas e filmes romenos, eu era puro arrependimento por ter esquecido minha câmera fotográfica em cima da mesa de casa quando saí atrasado para pegar o trem. Contentei-me em guardar os cachorros peludos na memória e oxalá voltar um dia.

Nos meses seguintes, todas as minhas tentativas de convencer o jornal a me mandar de volta para Bucareste falharam. O ano virou. Quando a temperatura melhorou, resolvi ir por conta própria, padrão turista. Coloquei a câmera na mochila e alguns pendrives com músicas e filmes brasileiros que fiquei devendo aos romenos.

Os cachorros de Bucareste e a cerveja SilvaQuis o meu azar (e a sorte do jornal) que minhas pequenas férias fossem por água abaixo por causa de um impeachment.

A LESTE DE BUDAPESTE

Não faltava assunto na capital da Hungria. A tensão política da época posicionou o país no centro de um debate político complexo, turbinado por reincidentes protestos muito violentos envolvendo neonazistas, skinheads e grupos da extrema-direita de várias gerações.

O tensionamento ultrapassou as fronteiras de interesse da União Europeia. Da noite para o dia, a Hungria estava na primeira página de todos os jornais do mundo.

A poucos quilômetros ao leste, na Romênia o clima era incompreensivelmente pacífico e sem protestos, apesar da crescente tensão política. Ninguém entendia bem o que estava acontecendo, pois historicamente os protestos húngaros eram pacíficos, enquanto do lado romeno se esperava confusão. A lógica inverteu-se naquele ano.

Eu não conseguia ler nada dos jornais e sites romenos. Ficava extremamente frustrado, me sentindo um tapado, porque os romenos entendiam mais da metade do que eu falava em português, mas eu não conseguia entender absolutamente nada vindo deles.

As traduções das agências de notícias sempre deixavam muito a desejar. Obter informações sólidas da crise romena tornou-se um mato sem cachorro.

E eu só pensava em voltar para Bucareste e fotografar aqueles cachorros enormes e peludos.

Heróico tênis Rainha

Meu pequeno trunfo (e grande sorte) era ser bem-vindo na Embaixada da Romênia em Budapeste. Tive pouquíssimo contato com a embaixatriz Ireny Comaroschi, mas rapidamente percebi que o vice-cônsul parecia alucinado por futebol e, junto a ele, também eram fãs o assessor de imprensa, o adido cultural, a secretária e a estagiária. Até os seguranças abriam um sorriso largo quando me viam chegando com o tênis surrado e a mochila nas costas.

Eu não entendia nada de futebol naquela época e entendo menos ainda hoje. Não obstante minha ignorância no assunto, o fato de ser o único brasileiro na região com interesse na crise política era uma desculpa para (eles) falarem de futebol o tempo todo.

Todos eram muito simpáticos e passavam informações oficiais que nunca estavam publicadas nas agências, além de algumas informações em off na mesa dos dois bares na rua da embaixada.

Depois de alguns meses, a secretária da embaixada passou a traduzir para o inglês as principais notícias dos jornais romenos e começou a me mandar por e-mail.

Em uma das mesas de pôquer que eu frequentava, havia outros três correspondentes estrangeiros, bem mais experientes e morando no país há bem mais tempo. Sondei discretamente a situação e descobri que ninguém mais recebia o email da embaixada. E também pouco se interessavam. Afinal, era a Romênia.

Fiquei com duas teorias na minha cabeça:

1) O pessoal da embaixada devia me achar meio tapado, meio burrinho, porque eu sequer sabia o nome dos principais jogadores da Seleção Brasileira. Eles sabiam tudo. Nomes, datas, estádios, títulos, negociações entre clubes internacionais e até o número da camisa. Então a embaixatriz deve ter autorizado essa regalia para mim, talvez numa tentativa de me ajudar a não perder o emprego por ser tão desinformado.

ou

2) Eles queriam ajudar porque eu era o único brasileiro (até então, pelo menos) com interesse genuíno na crise, além de não fazer piada dizendo que todos os romenos são vampiros da Transilvânia. Seria um jeito de me dar uma colher de chá, digamos assim.

Não sei qual das teorias era a correta, até que certa noite a estagiária da embaixada me confidenciou que era um pouco das duas.

E que eventualmente eles debateram se eu era tapado mesmo.

IMPEACHMENT ou GOLPE –

Antes que a crise política piorasse na Romênia, arrumei minha heróica mochila de 6 kg e fui ao aeroporto — sem esquecer a câmera desta vez. Consegui um voo promocional de 99 dólares da Ryan Air, na época uma grande novidade e sensação.

Os cachorrões enfim me aguardavam!

Naquele inglês macarrônico, quando o piloto informou que talvez a gente não conseguisse pousar no aeroporto Aurel Vlaicu em Bucareste, pensei comigo mesmo que o avião ia cair e eu morreria por causa de uma dúzia de cachorros que pareciam os pets do Conde Drácula.

Depois desconfiei do motivo real, mas nunca imaginei que fosse ocorrer tão cedo. Nem as previsões mais pessimistas sondavam a possibilidade de um Golpe de Estado prematuro ou, oficialmente, um impeachment do presidente romeno.

Por 322 votos a favor e 108 contra, o Parlamento aprovou o afastamento do presidente Traian Basescu, eleito para o cargo em 2004. Isso ocorreu justamente naquele ano de 2007, quando a Romênia passou a fazer parte oficialmente da União Europeia, contra tudo e contra todos. Uma desestabilização seria o caos.

E foi.

Conseguimos pousar porque não havia combustível suficiente para dar meia volta ou arriscar outra cidade. O aeroporto Aurel Vlaicu estava sitiado e os militares com a clássica palavra de ordem: ninguém sai, ninguém entra. Não sei se nosso voo havia sido o último, mas dava para ver os passageiros descendo dos aviões no meio da pista de decolagem e voltando a pé para o aeroporto.

Ali eu sabia que poderia acontecer duas coisas:

1) Ficaria preso no aeroporto, sem poder sair, até a próxima autorização de decolagem onde mandariam todos de volta para Budapeste.

ou

2) iam revistar minha mochila, encontrar a câmera fotográfica e a carteira de imprensa, e eu também ficaria preso – só que não no aeroporto, mas em alguma delegacia ou quartel, até a situação se acalmar.

O aeroporto não era grande e parecia o dia do juízo final com crianças chorando, soldados gritando e pessoas empurrando as outras para achar as malas que despacharam.

No meio daquele apocalipse, dei um jeito de empurrar a câmera para o fundo da mochila (nunca façam isso!), sem saber se estava com mais medo de quebrar a lente ou de algum soldado me pegar no flagra.

Fui devagar em direção à saída esperando ser barrado, esperando os gritos para abrir a mochila, mas o caos naquele exato momento era tão grande que provavelmente os milicos ignoraram um baixinho com cara de mongol e um tênis Rainha todo rasgado.

Havia poucas horas que o presidente fora deposto do cargo. Os romenos entraram em colapso porque o histórico do país com Golpes de Estado era feio, sangrento e ainda muito recente na memória de todos eles. E logo ali ao lado, na vizinha Hungria, os protestos ainda estavam feios, sangrentos e violentos.

RONALDINHO ME SALVOU

Ronaldo e Ronaldinho em Bucareste

Fora do aeroporto, não havia mais táxi e não havia mais comunicação, pois o sinal de celular desapareceu.

Já era madrugada e começaram a aparecer caronas solidárias até o centro da cidade. Emburaquei num Dacia Logan (Renault Logan) caindo aos pedaços. Com outras seis pessoas dentro do veículo. Tudo bem que em 2007 eu era mais magro, mas até hoje eu não sei como entraram sete pessoas ali.

Do centro, consegui caminhar até o albergue onde havia feito uma reserva.

O albergue estava vazio de hóspedes, as ruas estavam vazias, tudo estava vazio e silencioso. O caos do aeroporto parecia um passado distante. O atendente do albergue parecia deprimido com a notícia do golpe, me deu a chave para o melhor quarto daquela espelunca e dormi feito neném.

Durante o dia, conforme previsto, as ruas estavam sitiadas pelos militares, a imprensa proibida de circular, fotografias nem pensar. Com exceção do silêncio, muito silêncio, todo o resto parecia normal. As bancas de revistas continuavam abertas, os bares e restaurantes também.

Só os cachorros de Bucareste que não estavam mais lá. Na verdade, pouca gente se arriscou a sair de casa no primeiro dia depois do impeachment.

Somente no terceiro dia, sem notícias de violência ou nada mais grave, aos poucos as pessoas começaram a voltar a circular. Os romenos estavam menos deprimidos e mais calmos, pois não houve a violência do passado que parecia tão presente. Ainda consegui conversar com algumas pessoas e fazer anotações. E algumas fotos, com muita desconfiança e um pouco de medo. Ou vice-versa.

E ainda nada dos cachorros.

Em determinado momento, um vira-lata magrelo se aproximou e curiosamente passou horas andando do meu lado, enquanto eu caminhava pela cidade procurando os cachorros gigantes da minha última visita. Nenhum apareceu. Ficamos eu e o vira-lata a ver navios. De todos os cachorros da cidade, ele foi o único que teve foto. E eu perdi essa foto. Descobri quando sentei para escrever esta crônica.

No quarto dia, não lembro mais de ter visto militares na rua, comecei a usar a câmera, percebi que ao menos no centro da cidade a normalidade havia voltado e o aeroporto fora liberado.

Ainda havia o caos instalado na organização das decolagens e principalmente no controle de bagagens. Fiz as contas e achei que já tinha tido sorte demais até aquele momento, não quis arriscar e fui pegar o próximo voo de volta para casa em Budapeste. Onde, aliás, estava previsto um novo protesto violento no fim de semana.

Tudo deu certo (diante das circunstâncias) com exceção dos cachorros de Bucareste.

De volta ao aeroporto no quinto dia, o caos continuava instalado porque muita gente queria deixar o país ao mesmo tempo ou, talvez, passar um tempo longe até a situação acalmar. Ainda havia muita gritaria, muita criança chorando e muitas malas por cima das outras sem a menor lógica ou indicação.

Na hora de ir ao embarque, fiquei com medo do raio-x. Ainda por causa da câmera. O aparelho do aeroporto estava sem funcionar e os militares estavam revistando as bolsas uma a uma, abrindo e remexendo em tudo. Quando pegaram a minha heróica mochila, meu coração parou por alguns segundos ao ouvir o barulho da câmera caindo em cima da mesa. Pensei no prejuízo da lente que sequer havia terminado de pagar.

A lente não quebrou, mas começou de novo a gritaria, outros militares chegaram já com as algemas abertas e olhando em minha direção e mexendo na câmera. Pela mímica e pelos gestos, entendi que queriam confiscar tudo e me tirar dali para não atrasar a fila.

Eles não queriam falar inglês. Só com o intérprete autorizado, que evidentemente não estava ali no meio do caos. Minhas coisas estavam todas espalhadas ao redor da mesa do raio-x, puxei uma camisa azul que tinha uma bandeirinha do Brasil bem discreta e a única coisa que me veio em mente naquele momento foi começar a falar Ronaldinho, Ronaldinho, Brazil, soccer, football, Ronaldinho, Kaká, Ronaldinho.

Nunca teria imaginado que Ronaldinho seria um idioma universal da simpatia e boa vizinhança, mas os homens abriram um sorriso e começaram a dizer o nome de praticamente toda a Seleção Brasileira (ai meu deus de novo) e eu dizendo YES, YES, sem saber quem danado eram aqueles jogadores, mas só YES, RONALDINHO, YES, RONALDINHO. 

Mostrei algumas fotografias na câmera para garantir que não havia imagens de protestos ou dos bloqueios militares. Em determinado momento, rimos juntos quando apareceram umas fotos de paredes pintadas com o nome de Ronaldinho, os milicos me deram tapinhas simpáticas nas costas, respondi com mais RONALDINHO para eles, e para minha imensa e profunda sorte, naquele ano de 2007 as selfies ainda não existiam.

Um dos soldados jogou meus bagulhos na mochila, apontou aonde ficava o portão dos voos para Budapeste e, sem olhar para meu passaporte ou passagem aérea, liberou minha entrada e antes de a porta fechar ainda ouvi dois milicos acenarem para mim aos gritos de RONALDINHO!

Foi a última vez que pisei em Bucareste.

Lá se vão 12 anos. Pretendo retornar em breve. Agora em 2019, a Romênia assumiu a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. Quero procurar os malditos cachorros gigantes de novo. Mas antes pretendo assistir documentários e muito youtube sobre futebol brasileiro.


Foto em destaque:
Praça próxima ao Parlamento em Bucareste, Romênia, em 2007.
Câmera Sony a100 | 1/60 sec | f/8.0 | ISO 100 | 18mm
Veja outras 17 fotografias de Bucareste neste link direto do Flickr.

2 Comments Os cachorros de Bucareste

  1. Natalia

    Nossa que interessante , descobri hoje o seu site e fiquei maravilhada como descreveu a situação . Acabei de adicionar aos favoritos .

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