Quando meu tempo parou no tempo

Rebêlo | 01.maio.2018


Outro dia, meu pai levou uma queda. Sem saber como caiu e nem como levantou. Nada mais normal. Ele ainda levará outras tantas. Um dia não vai levantar mais.

Depois será minha vez.

Aprendi a ignorar a passagem do tempo desde muito novo. Acho que devo parte desse aprendizado torto aos teoremas de Stephen Hawking sobre singularidade no espaço-tempo.

Hoje desconfio se não foi o contrário. O tempo que aprendeu a me ignorar. E continuou a passar sem se dar conta da minha presença.

Há quase 40 anos, meu pai corria pela areia da praia em Alter do Chão tentando me ensinar a empinar papagaio. No dia seguinte, aproveitava o piso de cimento branco da pracinha em Alenquer para mostrar como rodopiar um pião de madeira.

Nunca aprendi nenhum dos dois.

Quando lembro, e eu sempre lembro, parece que faz apenas quatro anos.

Ao acordar,

tenho ido até o terraço de casa para ver se alguém ainda caminha pela rua, se os carros ainda passam, se as folhas ainda se mexem nas árvores.

Ao dormir, tenho fechado os olhos com medo que no dia seguinte o tempo tenha ido embora e me deixado no limbo de um mundo sem movimento.

O terraço de casa e as janelas dos hotéis têm sido meu alarme de realidade e meu suspiro de alívio.

Minha percepção do tempo parou de funcionar em algum momento. Não sei quando. Não sei como. Sei apenas que tem piorado e que não tenho mais percebido os dias passando.

É como se um dia levasse uma hora e a semana levasse um dia.

Sinto dificuldade em processar os eventos de um ano inteiro, porque para mim parece que levou um mês.

Quando tento entender o significado do que ocorreu nos últimos anos, me perco nas contas e minha consciência se perde em meio a desculpas a tantas pessoas que deixei passar, deixei largar, deixei emigrar, deixei me amar.

Simplesmente por não perceber o tempo delas. Não por vontade, mas por incapacidade.

Ainda não entendo ao certo se perdi a capacidade de localizar o tempo no meu espaço ou se meu espaço se deslocou do tempo.

Ou talvez eu esteja apenas me afogando em memórias incontrolavelmente presentes que ignoram os tempos ausentes.

Dia desses,

comentei para um grupo de amigos qualquer coisa sobre minha primeira experiência de trabalho aos 12 anos de idade. Só no dia seguinte percebi que a maioria deles sequer havia nascido quando eu tinha 12 anos.

Minha relatividade tem se tornado inútil porque continuo achando que foi ontem. Lembro até das linhas de código que escrevi naquele dia.

Queria que meu deslocamento perceptivo do tempo pudesse se estender a outras pessoas. Talvez assim elas pudessem congelar a saudade, controlar a ansiedade, conter a vontade. Com a mesma facilidade.

O problema é que elas estão no tempo certo. Com o relógio biológico a cronometrar cada minuto, cada dia, cada semana. Do jeito que deve ser. Quatro meses continuam sendo quatro meses e quatro anos continuam sendo quatro anos.

Mesmo que me pareçam quatro dias.

Se tudo parece tão presente, mesmo quando é ausente, tem se tornado impossível calcular o tempo para frente.

Converso com uma mulher de 50 anos e com outra de 20 anos e enxergo as mesmas possibilidades. Às vezes, percebo nelas até os mesmos medos e anseios. É como se o tempo delas me fosse imperceptível. Como se o muro de três décadas entre as duas não existisse por não ocupar espaço no meu tempo.

Passo pelo bares que fui, pelos bares que vou, pelos bares que já fecharam e lembro dos velórios recentes destes últimos anos. Fica nebulosa a diferença entre aquele que se foi e aquele que há dez anos não vejo.

Volto para casa e vejo a propaganda de um jogo, Battlefield 1, dizendo que Primeira Guerra Mundial ocorreu há mais de 100 anos. Levei um choque. Já faz tanto tempo? Outro dia eu estava lendo sobre as guerras e elas pareciam tão próximas dos nossos avós que, por sua vez, estavam tão próximos de nós.

Sinto minhas pernas cansadas depois de caminhar por uma hora, mas culpo apenas o sedentarismo dos últimos anos e não o tempo que passou. Acredito que poderia ir, agora mesmo, comprar uma cabana de camping e fazer os mesmos acampamentos que fiz há 25 anos no meio da floresta.

Iria até a rodoviária com aquela moça de 50 anos, ou com a outra moça de 20 anos, para pegarmos um ônibus e passar o fim de semana na praia. Sem perceber que talvez a primeira não tenha esse tempo; e que a segunda talvez não queira esse tempo.

Não sei realmente se meu tempo parou ou se apenas passou. Ou se apenas não é o mesmo tempo do mundo, atropelando o sentimento de estarmos juntos.

Gosto de pensar que ainda tenho tempo para descobrir.

Afinal, faz apenas uma semana desde que o ano passou.


Foto em destaque:
Um relógio parado no Congresso Nacional.
Brasília, Brasil | 26 de fevereiro de 2012. 

Canon EOS 5D Mark II | 16mm | 1/320 e f/4 | ISO 3200

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