A grande sacanagem francesa

Paulo Rebêlo | 11.nov.2016

Não tenho simpatia pela França, especialmente por Paris que considero um engodo social, mas admito que durante muito tempo alimentei um fetiche pelo Aeroporto Charles de Gaulle.

Minhas conexões aéreas costumam ser na base de café, cerveja e Word, enquanto observo aquela correria e imagino as histórias que cada uma deve ter para contar.

A única diferença de Paris é a gente pensar que talvez o triunvirato tricolor mais belo das galáxias – Juliette Binoche, Julie Delpy e Irène Jacob – possa aparecer correndo por ali para não perder o embarque.

Já pensou se uma delas perde o embarque e senta na mesma cafeteria para esperar o próximo voo? Nem o próprio Kieslowski saberia como se comportar.

E antes delas, quantas vezes as Isabellas mais lindas da Via Láctea, Huppert, Rossellini e Adjani, não teriam cruzado aqueles corredores enquanto liam os roteiros?

E elas iam sorrir, sozinhas, pensando em estrelar mais um filme francês que ninguém vai entender, mas que metade do mundo vai elogiar só porque é francês e a outra metade vai assistir só por causa delas.

Quando estava para pedir o último café e a última cerveja, percebi ao lado uma francesa-estereótipo (ou seja, linda) com um olhar de curiosidade súbita.

Fiz a conta de quantas cervejas se foram e imaginei que já devia estar meio zoró e ter sujado o chão, ou sujado a camisa, ou talvez havia espuma de cerveja na barba, ou qualquer coisa desagradável dessas que os bêbados fazem sem perceber e todo mundo percebe. Até mesmo as francesas lindas.

Não encontrei nada visivelmente desabonador, mas lembrei que ela também estava ali há algum tempo e com uma expressão meio triste.

Faz parte do cardápio francês de charme universal. Elas são belas e melancólicas, sensualizam a tristeza de um jeito tão eficiente que, desconfio, devem aprender isso desde muito cedo no colégio. E depois fazem mestrado e doutorado no mesmo departamento.

A expressão triste agora era de curiosidade e talvez tenha extrapolado todos os limites francófonos de aceitação, porque ela fazia um gesto com a mão e falava algo em minha direção.

Mas não entendi lhufas, pois, óbvio e ululante, meu francês sempre se resumiu a:

  • trois croissant (um é pouco, dois é bom, três nunca é demais);
  • o nome de meia dúzia de atrizes francesas cujos filmes não eram muito diferentes daqueles da Sexta Sexy da Band;
  • Voulez-vous coucher avec moi, que Cicciolina profetizou ao mundo nos anos 70 e eu sempre quis falar isso de verdade.

Acho que ela entendeu minha ignorância latino-americana, pois trocou para inglês e voltou a falar.

E essa é outra grande sacanagem francesa com o mundo.

Não basta elas serem francesas e sensualizarem a tristeza, elas também conseguem ter o sotaque mais umidificante do planeta quando falam inglês.

As Nações Unidas deveriam proibir as francesas de falar inglês. É uma injustiça com todas as outras mulheres do mundo. Até o Chuck Norris se derrete igual a queijo coalho recongelado na chapa do misto quente.

Ela deve ter percebido a quantidade de xícaras na mesa e a satisfação de eu estar ali olhando o vai-e-vem das pessoas na madrugada. Saquei toda minha criatividade latina para responder algo bacana, mas só consegui dizer que era melhor esperar oito horas bêbado do que oito horas sóbrio.

Ela voltou para a tristeza dela e eu voltei a ter crises de sociabilidade pensando em pelo menos oito respostas melhores que pudessem prolongar a conversa com uma francesa-estereótipo.

Talvez ela fosse dessas pessoas que não conseguem ficar muito tempo sem falar, pois dez minutos depois perguntou algo tipicamente francês, dessas perguntas bem facada no fígado:

“essa satisfação toda não é por que você está esperando alguém especial?”

Travei a língua (e o cérebro) e em poucos milissegundos desenhei mentalmente uma resposta e todo o cenário do que aconteceria depois.

Eu responderia que estava esperando por ela. Há quase três horas, desde que a vi sentada na mesa ao lado com o olhar triste e sem tomar café.

Ela ia soltar aquele sorriso melancólico-umidificante e começaria a falar que acabara de comprar uma passagem só de ida para a Croácia, para esquecer de tudo que deu errado na França.

E dali teríamos um diálogo recheado dos clichês de filmes franceses, eu ia perder a chamada para o embarque depois que ela convidasse para me mostrar a verdadeira Paris, aquela Paris que realmente é um engodo social, mas talvez não seja um engodo cultural.

Depois de andar algumas horas pelos Banlieue parisienses e experimentar todos os tipos de croissant suburbanos, eu continuaria achando a cidade um engodo, mas nesse momento nós seríamos o remake dos amantes da Pont-Neuf e em seguida ela estaria seminua dentro de um hotel de quinta categoria, com as baratas circulando no corredor, a porta do quarto sem fechadura, enfim, uma cena tipicamente francesa.

Ela ia me falar sobre os vinhos franceses, enquanto eu sentiria falta de Vinho Carreteiro e ia comparar os croissants com o pão francês da padaria de Seu Albino e questionar por que francês não come pão francês?

Eu responderia tudo isso ali naquele momento da madrugada, mas quando destravei a língua (e o cérebro) respondi apenas que talvez a Juliette Binoche passasse por ali na área de desembarque e me convidasse para dar uma volta na ponte Neuf.

E ri, mas ri sozinho, porque só depois percebi que talvez ela nem tivesse nascido quando esse filme saiu.

E talvez hoje eu estivesse escrevendo da Croácia e vendendo cachorro-quente nas praias de Zagreb, enquanto ela continuaria francesa e linda, convertida em popstar da cena pornô croata em 4K Ultra HD.

Então acho que prefiro ficar aqui escrevendo e sem esperar por uma Rainha Margot.

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