Ébrio regresso

Paulo Rebêlo
NE10/JC | 18.julho.2014
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O melhor e o pior de voltar a trabalhar no Recife Antigo é o saudosismo.

Por dez anos me vi pensando como seria esse regresso ao antro de boemia que tanto me abraçou, às vezes literalmente, nas madrugadas inóspitas à procura de um isqueiro.

Já comecei todo errado, porque há mais de dez anos isto aqui passou a ser chamado de parque tecnológico. Não devo ser injusto. Tanto que fiz questão de procurar onde está o parque para brincar e onde está a tecnologia para usar, mas ainda não achei. Me sugeriram procurar no shopping.

Também nunca imaginei que um copo de maltado precisasse de tecnologia para ser mantido com o mínimo de dignidade. Aparentemente, precisa. E perderam as anotações.

Ainda pago a pequena fortuna pelo copo de 300ml apenas para curtir o silêncio, já que o (novo) local está sempre vazio. Nos dias de hoje, o silêncio ao meio-dia vale mais.

Não fosse pelo Bar 28, o Bar do Fogão e a ressurreição ao terceiro dia (da semana) do lombinho do Royal, a boemia estaria caduca e o bairro inteiro teria sido abduzido pelos aliens.

Mesmo com a heróica resistência, o saudosimo definha.

Toda quarta-feira, atravesso as duas avenidas do bairro para rezar a cartilha suína. Espero ansiosamente por esse dia. Desde a quinta-feira, calculo quantas horas faltam para a quarta.

Já tentei parar e convidar alguns colegas de antigamente, mas uma parte está de dieta forçada pelo médico, uma parte se aposentou, uma parte morreu de cirrose e a maior parte morreu de tédio e não avisaram.

É verdade, e novamente não devo ser injusto, que encontro companhias aleatórias para o melhor lombinho de porco do bairro, quiçá da cidade. Embora desconfie, paulatinamente, que esses novos descobridores não retornem porque lá não tem salada e nem suco de goiaba.

Paro em frente ao jornal e olho para a escadaria. Desce um pessoal usando calças coloridas e eles andam atracados um ao outro. Fiquei curioso em saber onde essas pessoas almoçam, mas, pensando bem, talvez elas se alimentem de luz.

Aqui não é o Estelita, mas a gente também resiste.

E apesar do dobro do peso e da metade dos cabelos, me senti abraçado novamente quando dois flanelinhas e um dono de fiteiro lembraram de mim neste ébrio regresso ao Recife Antigo.

Ganhei deles um talão de zona azul, dois maços de Hollywood e muitas dúvidas inssolúveis sobre o paradeiro de Madona.

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