Um messias chamado torresmo

Paulo Rebêlo
Terra Magazine
08.fevereiro.2012
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Às vezes, tudo que a gente precisa na vida é um torresmo e um quartinho de pinga.

Durante uma das épocas em que eu chegava do trabalho de madrugada, todos os dias, o único lugar para encontrar um prato de feijão com macarrão era um boteco bem derrubado na esquina de casa.

Havia vários outros lugares interessantes por perto, mas aquele era o mais barato e o único com televisão onde a gente conseguia ver a imagem e ouvir o som.

Um lugar onde engraxates, flanelinhas, vigilantes e outros trabalhadores da madrugada se encontravam para juntar as moedas e dividir uma garrafa de pinga antes de ir para casa. Não somente pelo preço, mas sobretudo porque ali os clientes, garçons e donos eram todos iguais. Sem frescuras e sem olhares enviesados.

Eventualmente, quando era jogo do Corinthians, o dono (fanático) liberava de graça duas cervejas ruins para cada um dos frequentadores assíduos. Geralmente Antarctica Subzero, Brahma Fresh ou Nova Schin. A festa estava montada. A dor de cabeça também.

De madrugada, sem Jornal da Globo ou jogos de futebol, um senhor sempre descia a rua com a mesma roupa, a mesma mala preta quase rasgada e um par de sapatos sociais pretos que, de tão velhos, eram amarelos.

Quando ele chegava no boteco, nem sentava. Ainda de pé, pedia a mesma coisa todos os dias: um torresmo gigante e uma meiota da branca pura. Custava um real o conjunto. Em quatro moedas de 25 centavos.

Na primeira mordida, todo aquele semblante triste e cansado, que eu ficava observando desde o início da ladeira, parecia se desfazer. Meus olhos enxergavam a mais pura e honesta felicidade, enquanto meus ouvidos escutavam meu estômago se contorcendo e o ácido subindo pelo meu esôfago como se fosse um vulcão de acidez a sair pelas narinas.

Mas ficava feliz mesmo assim. Por mim e por ele.

Cada gole da branquinha era regrado com parcimônia. Todo o ritual não durava mais de 15 minutos. E todos nós ali no bar, naquele momento, sabíamos que aqueles 15 minutos eram os únicos instantes de leveza na vida dele. Ninguém admitia, mas cada um de nós tinha uma certa inveja daquele comprometimento.

A exemplo daquele senhor, com o passar dos anos a gente conhece várias outras pessoas com manias e alegrias parecidas, embora em bairros e cidades diferentes. Rico ou pobre, advogado ou engraxate, às vezes trocamos todas as nossas riquezas por duas fatias de bacon. Ou todos os nossos problemas por um torresmo.

Quando fui embora daquela vizinhança, já tinha intimidade o suficiente com o dono para deixar um crédito de 100 torresmos para aquele senhor. Um torresmo com pinga por dia, nada mais, cem vezes seguidas.

Durante 100 dias úteis ele deve ter questionado quem fez aquilo, mas nunca teve ideia. Porque sempre tive vergonha de me aproximar naqueles 15 minutos de felicidade para perguntar qualquer coisa. Seria uma invasão a qual nunca me dei o direito.

Verdade, ele poderia usar as quatro moedas extras para comprar outro torresmo com pinga. Mas eu tinha certeza que bastava um. No fundo, não éramos tão diferentes assim, com nossos rituais e pequenas alegrias. De diferente, só as iguarias.

Se nossas amantes e esposas entendessem como um simples torresmo faz tanta diferença na vida de um homem, talvez as grandes expectativas e longas cobranças perdessem um pouco de sentido para elas.

Se elas entendessem o tanto de problemas que desaparecem depois de um bife parmegiana às duas da manhã e uma dose de uísque, talvez elas chegassem à conclusão que os nossos problemas são, na verdade, parte da solução.

Se elas conseguissem encontrar em nós os torresmos que encontramos nelas em pequenas doses diárias, talvez elas até achassem graça ou ficassem com vergonha da quantidade de questões supérfluas que as pessoas se preocupam todos os dias.

Certamente não seria a solução dos sonhos, do cinema ou da novela das oito. Mas ao menos seria uma solução honesta. E ninguém precisaria de um segundo torresmo.

Talvez só um pouco mais de omeprazol.

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