Kwaidan número 2

Paulo Rebêlo
Terra Magazine *
19.abril.2011

Talvez uma meia dúzia dessas mulheres fantasmas eu nunca mais encontre na vida, sequer sei se ainda estão vivas diante de sumiços repentinos.

Uma outra meia dúzia de fantasmas desapareceu conscientemente, por um motivo ou outro, cada uma com suas razões nem sempre racionais ou explicáveis. Ou simplesmente porque casaram e acham melhor evitar certos encontros.

Em comum, a todas elas, é claro que gostaria de encontrá-las uma vez mais. Não para prosseguir com histórias de um passado tão distante, mas apenas para agradecer o quanto elas nos ensinaram, independentemente do tempo de convívio.

Uma das fantasmas mais doces que conheci, decerto, desapareceu do mesmo jeito que surgiu – do nada, feito aparição – e assim instalou-se na minha memória até hoje.

Ela era piloto em São Paulo, fato que achei exótico e curioso por si só. Tão linda a ponto de me deixar encabulado todas as vezes em que nos encontramos, fosse para tomar um café depois do expediente ou matar a fome nas padarias 24h da paulicéia desvairada.

Por tantas vezes me peguei pensando por que ela perderia tempo, noites assim, com um barrigudinho que mal conhecera, que estava sempre de passagem e, ainda por cima, adorava falar mal da cidade, do quanto preferia ir apenas a trabalho, nunca morar de verdade.

Graças a ela, perdi o medo da turbulência do avião e passei a entender o motivo de tanta gente dizer que helicóptero é um bicho seguro. Mesmo sem (ela) saber, aprendi mais sobre esperanças e frustrações humanas, com ela, do que aprenderia com duzentos livros.

Durante quase um ano, nos encontramos por não mais do que oito vezes. Talvez menos. Ela nunca deu bola alguma, nunca insinuou nada, nunca deu a entender se estava interessada em qualquer coisa que não fosse uma companhia para jantar a qual, eventualmente, teria uma boa história para compartilhar.

Mas também nunca foi objetiva o suficiente para dizer o contrário.

Ciente de minha condição de mero viajante e forasteiro, também nunca sugeri ou insinuei nada. Sobretudo porque na minha cabeça só conseguia pensar na centena de homens cultos e inteligentes que deveriam fazer todos os tipos de convite para uma mulher tão bonita e igualmente inteligente assim.

Nunca houve o passo seguinte. Mesmo depois de horas, de noites inteiras de conversas e frustrações compartilhadas de uma mulher feita que, aos meus olhos, parecia ainda ser uma moça com tanto para descobrir sobre si mesma e sobre o mundo lá fora.

Um belo dia, ela sumiu. Para nunca mais ser encontrada.

Naquele distante ano, cheguei em São Paulo pela décima vez em apenas seis meses e é como se ela nunca tivesse existido.

Durante quase dez anos depois dali, continuei a procurá-la.

O telefone da casa dela disparava e ninguém atendia, nem mesmo algum parente. O celular, desligado ou fora da área de serviço. O e-mail ficou inexistente da noite para o dia. Aquele mesmo endereço de e-mail pelo qual, um mês antes, ela me perguntara em tom de piada e curiosidade: “sabe, outro dia fiquei pensando o seguinte: se eu morresse, como é que você ia ficar sabendo?”

Procurei na lista telefônica e, durante meses a fio, telefonei para quase cem pessoas com o mesmo nome. Durante outro tanto tempo pedi ajuda a Deus (Google) e também nada encontrei.

Na ineficiência de Deus, anos depois surgiu esse capeta do Facebook e tentei negociar. Encontrei mais de 200 pessoas diferentes com o mesmo nome. Cliquei em todas. Pior do que a fila do falido Inamps. Hoje, já passaram de 400.

Cheguei a ir a três delegacias e meia dúzia de cartórios em São Paulo, não cheguei a contar quantas horas passei em cada um, embora sem o menor sucesso porque não tinha o endereço residencial, não tinha o nome completo, não tinha o número do RG ou CPF, não tinha o nome dos pais dela. Aqueles únicos dois nomes, que guardo até hoje, são mais comuns do que imaginei.

No banco de dados da operadora telefônica, o número apareceu como inexistente ou inoperante.

Quando sugeri ao delegado fazer uma descrição para algum especialista desenhar e procurar em algum banco de dados, ele disse que eu estava vendo muito filme americano.

Até hoje, não sei se ela deixou-se levar pela depressão aguda (uma de suas reclamações recorrentes), se fez as malas e foi meditar na Índia, se virou freira, se mudou de nome ou de cidade, se entrou no programa de proteção à testemunha, se virou hippie em Alto Paraíso ou se resolveu casar e ter oito filhos.

Curioso porque minha maior angústia não é apenas saber se está viva ou não. É de lembrar de tantos detalhes e, ao mesmo tempo, não conseguir lembrar quando e onde nos falamos pela última vez.

Porque a última vez nunca é a última. A gente sempre acha que haverá o dia seguinte. E quando não há, deixamos de dormir pensando sobre o quanto teríamos para agradecer, para conversar, para compartilhar.

Um abraço mais apertado, um beijo na testa, um táxi no meio da chuva ou a porta do elevador se fechando. Ou teria sido apenas um “tchau e até a próxima”? Não recordo mais.

Ela simplesmente deixou de existir. Se é que existiu de verdade.

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