O mundo é uma bola

Em uma ruazinha escura na parte alta de Budapeste, encontrei uma taberna belga onde, quase sempre, eu parecia ser o único cliente disposto a voltar. De todos os colegas que levei, só dois ou três admitiram ter gostado, mas ninguém pedia para voltar. Gostava não apenas pela cerveja e pelo tempero diferente, mas porque o dono, um senhor belga de poucas palavras, sempre colocava um jazz bem tradicional para ouvir. E foi ali que mentalmente precisei pedir desculpas a Thomas Friedman e seu excelente livro-argumento de 2005 de que o mundo é plano.

Não é.

Friedman diz (no livro) que precisou ir à Bangalore para entender como a globalização tem mudado os conceitos socioeconômicos e que hoje o mundo tornou-se plano. Sorte a dele. Porque eu precisei de bem mais do que algumas, talvez muitas viagens ao desconhecido para achar que o mundo é só uma bola.

E de uma música ridícula para ter certeza.

Depois de cinco litros de Leffe Blond, uma iguaria dos mestres cervejeiros belgas, sai da caixa de som a voz sintetizada de Dido, uma insossa e magrela cantora britânica. Devo ter perdido o horizonte por uns minutos e o máximo que pude responder a meu curioso interlocutor daquele dia era que aquilo fora a senha para pedir a conta e ir embora, já era tarde. Ele pulou da cadeira e disparou: eu não acredito que essa música lhe lembra alguém do seu passado.

E revelou que também não podia sequer ouvir o nome daquela cantora e já ficava deprimido. Era a cantora preferida da noiva, que por um motivo que preferi não saber, foi embora para nunca mais voltar. Há cinco anos.

Situação ridiculamente banal e corriqueira. As pessoas deixam as pessoas para trás desde que o mundo é mundo. E quase todas as mulheres deste mesmo mundo parecem gostar de Dido.

O que transformou o espanto de simples recordações em um prisma de nem tão simples conclusões foi justamente a planície daquele instante demente.

Naquela noite de segunda-feira, me vi na condição de forasteiro-brasileiro tentando decifrar em húngaro um cardápio de comidas da Bélgica, conversando em inglês com aquele amigo do Azerbaijão, pedindo uma cerveza em portunhol para o garçom catalão. Garçom, por sinal, que aparentemente achou normal uma chinesa ter me confundido com um parente da Mongólia.

Jamal, o interloutor do Azerbaijão, parecia honestamente assustado em ter de acreditar como uma fração de segundos poderia invocar, segundo ele, lembranças do mesmo tipo de dois seres humanos de mundos virtualmente tão diferentes.

Tentei lembrar do mapa-mundi e localizar o Azerbaijão. Se ele achava que o Brasil era uma grande floresta tropical, eu achava que o Azerbaijão nem existia.

Naquele dia, ele compreendeu como não adiantava de nada conversar sobre mulheres russas e globelezas brasileiras, porque às vezes nossa vida inteira está ali saindo de uma caixa de som e a gente agora não podia sequer olhar pelo retrovisor, mas apenas lamentar e tentar enganar as lembranças todos os dias antes de dormir.

Anseios, planos, frustrações, amores e cobranças, numa estrofe passam a ser todos iguais de uma ponta a outra do globo. Pareceu-me a comprovação de uma teoria antiga a qual, talvez, estivesse conseguindo comprovar empiricamente ali.

E muita coisa perde o sentido a partir daí.

DEPOIS DO CASAMENTO –

Efter brylluppet é um filme norueguês que todo mundo deveria assistir. No Brasil, chama-se Depois do Casamento (After the Wedding/2007) e não tem absolutamente nada demais, nenhuma novidade, nenhum roteiro inovador. Apenas retrata de modo naturalmente cruel (de tão simples) como a cabeça de homens e mulheres parece programada para perseguir os mesmos objetivos e sucumbir às mesmas cobranças.

Jamal não queria voltar para sua cidade-natal (Baku, capital do Azerbaijão) porque a ex-noiva havia se casado com outra pessoa e provavelmente já teria se tornado mãe. Filhos que deveriam ter sido dele, imaginei. País pequeno, seria demais voltar a conviver a poucos quilômetros do que ele considerava ser o sentido de sua vida, mas que agora dava sentido à vida de outra pessoa.

É uma lógica enviesada; a qual geralmente só os homens entendem.

Naquela altura da madrugada, não havia mais ninguém na taberna. O garçom catalão e o senhor belga juntavam-se à mesa e, talvez para animar a conversa para os recém-chegados, o azerbaijano quis saber de uma romena que me elogiava por todos os lados. Não dei trégua, mas pedi que fizesse uma “leitura” da situação, agora que ele parecia enfim aceitar minha teoria de que conceitualmente o mundo dele não tinha nada de diferente do de ninguém, frase pela qual o vultoso senhor belga apenas coçou a barba grisalha como se lembrasse de algo importante.

Sem nunca trocar um diálogo comigo, mas tendo me visto inúmeras vezes bebendo sozinho e ouvindo jazz na taberna, o barbudo belga apenas apostou que a romena era casada e, com a confirmação do azerbaijano, tomou a palavra:

Ela deve ser linda, jovem e bem casada, mas não está acostumada a viver sozinha. Talvez soubesse o que era liberdade, mas não a queria para si. Precisava de alguém por perto, mesmo sabendo que seria um ombro temporário, alguém para preencher certas lacunas. E apesar do trocadilho infame, a lacuna em questão era apenas a possibilidade de conversar sem ser julgada, ter um pouco de segurança ocasional vinda de uma pessoa que, de tão normal, chegava a ser tediosamente interessante porque não se interessava por ninguém, não fazia planos para o futuro e ficava feliz em virar a noite na mesa do bar achando que ia aprender algo novo, mas que mostrava-se cansado de escutar as mesmas frustrações e os mesmos desejos de todos os continentes. Ela amava o marido, sem dúvida, mas não viu nada de mal em trocar um beijo enquanto bêbada, depois não viu nada de mal em guardar o segredinho de eventualmente preparar um café da manhã para aquele andarilho que parecia apenas contar os dias como se fossem números de relógio. E assim ela também vai contando os dias até o dia em que a vida dá mais um giro, um dos dois vai ter que ir embora e o mundo dela volta para o mesmo lugar de antes, tão previsível quanto tudo aquilo.

Do Oiapoque ao Chuí, do Ushuaia à Groelândia, do Alasca a Vladivostok, eu apenas questionei: no seu país seria diferente?

Ninguém precisou responder.

E assim refletimos até o amanhecer sobre as frustrações e anseios das romenas, búlgaras, tchecas, lituanas, armenas, russas, eslovacas, iugoslavas, francesas, alemãs, americanas, de todas as idades e de outra dúzia de nacionalidades que ainda hoje não faço a menor idéia de onde ficam no mapa.

Conosco não seria diferente. Vem em mente todas as mulheres você conheceu um dia, todas que lhe amaram e odiaram – não necessariamente nesta ordem – todos o momentos bons, todos os momentos ruins, todas as expectativas e todas as cobranças subsequentes.

Quase sempre como se houvesse um pote de ouro ao final do arco-íris e a gente precisasse cumprir certos requisitos para alcançá-lo.

Vem em mente todas as histórias que vi, ouvi e escrevi durante tantos anos nas metrópoles ou nos cafundós de judas do sertão, do deserto, da esquina de casa, do trabalho, dos amores perros. Todas as solteiras, casadas, jovens, madames, suburbanas, surtadas, inteligentes, frustradas, desencanadas, todas elas que de um jeito ou de outro compartilharam as exatas mesmas frustrações, expectativas e os exatos mesmos sonhos de padaria ou bolos de noiva.

E certamente, na diagonal entre Vladivostok e o Ushuaia, ouviram as mesmas respostas e sofreram as mesmas desilusões. Porque para onde você olha estão as pessoas com as mesmas buscas e os mesmos sonhos de felicidade empacotados em planos pré-pagos divididos em seis vezes sem juros.

E muita coisa perde o sentido a partir daí.

DEPOIS DO DIVÓRCIO –

Dido vai continuar saindo de caixas de som o tempo todo e em todo lugar.

A romena do café da manhã voltou para o marido e para o país dela, deixou o cabelo crescer, comprou uma casa de campo na Transilvânia, há dois meses teve uma filha que batizou de Paula e diz estar muito feliz.

Uma linda moça tcheca em busca eterna do seu príncipe encantado no Leste Europeu não o achou, mas soube que anos depois foi para a Espanha e, quem sabe, conseguiu encontrá-lo por lá. Um brotinho italiano de olhos azuis achou o tal príncipe, mas ele voltou sozinho para os Estados Unidos e, dia desses, ela resolveu se mudar para o Congo no serviço de voluntariado das Nações Unidas. Onde deve permanecer ad infinitum, presumo.

Uma jovem deusa ucraniana de parar o trânsito (em qualquer lugar do mundo) aparentemente ficou com medo de ficar solteira para o resto da vida e, aos 25 anos, casou-se com o primeiro empresário rico de Kiev que pediu sua mão. Ele tem 55 anos e eu respondi o e-mail apenas dizendo “o amor é lindo em todas as culturas do mundo, não é?”. Ela deve ter entendido a ironia e não respondeu mais.

Três anos depois, Jamal me conta que resolveu voltar para o Azerbaijão, após longas temporadas de trabalho no Cazaquistão (sim, do Borat) e na Rússia. Casou com outra e, dia desses, me manda um e-mail dizendo que a ex-noiva ainda não teve nenhum filho com o novo marido, então “talvez ainda haja uma chance de reconciliação”. Oito anos depois.

Pensei em responder que quando a gente precisa achar que sempre há uma chance, geralmente é porque não existe mais nada.

Mas não tive coragem. Não apenas porque eu sabia exatamente o que se passava na cabeça daquele coitado, mas porque geralmente é assim, a gente gira tanto e termina parando no mesmo lugar, sucumbindo aos medos iguais e cobranças desiguais, encontrando as mesmas pessoas com as mesmas expectativas e os mesmos sonhos.

Parecem trocar de nome e de endereço, mas permanece todo o resto.

Daqui a outra meia dúzia de anos, provavelmente vou receber um e-mail de Jamal dizendo que voltou a morar junto com a fã de Dido e que vão ter uns oito pequenos azerbaijanos. Um dia vamos todos nos encontrar para uma peixada no Quirguistão ou em qualquer outro ponto gélido e cinzento do globo terrestre.

E vai ser igualzinho ao boteco da esquina lá de casa.

E nesse dia todo o resto vai perder o sentido.

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