Envelhecendo na cidade

Paulo Rebêlo | maio 2009


Despedir-se de pessoas é fácil. Elas sempre podem ir até você ou você voltar a elas, por mais difícil que seja e por mais distante em que estejam. Pode não querer, mas a opção existe. Complicado é se despedir de cidades e lugares pelos quais você criou raízes. Tanto faz se passou uma vida inteira ou se criou vínculo a partir de poucas visitas.

Daqui a três anos, podemos pegar um avião e ir até São Paulo ou ao Sri Lanka. Mas daqui a três anos, talvez eu queira visitar o bar onde tinha conta e meu fiado não exista. O garçom pode ter arrumado outro emprego. A prefeitura pode ter fechado o boteco para expandir a rua. A construtora pode ter erguido um edifício. E todo mundo vai embora com a memória enterrada.

Se a gente não acompanha uma cidade em seu próprio ritmo, nada será como antes. É como um casal que se divorcia pedacinho por pedacinho, a cada dia, a cada detalhe renegado.

Retornar a uma cidade que há muitos anos você não vê é quase como reencontrar a pessoa que cravou um vínculo e não se tem notícia há tanto tempo. Há cidades e pessoas que você só visita uma única vez na vida e não obstante marcam você pelas histórias contadas e pelas experiências vividas.

Sempre surpreende como é possível desenterrar memórias tão distantes a partir de um simples passeio pelo centro da cidade.

Ao sair do hotel para ganhar a rua, sem rumo, o caminho parece ser o da reconciliação. É um cenário tão diferente de outrora, quando você saía com medo e com desejo de encontrá-la por acaso, sem saber o quê dizer.

Desta vez ela já não existe ali, mas você pode jurar que conhece todas as ruas da cidade tão bem quanto as curvas do corpo dela. E nas grandes cidades, mesmo com ruas e avenidas que parecem não ter fim, você enxerga não apenas as curvas, mas todas as irregularidades daquele corpo, todas as marcas. E quanto mais você anda, mais você quer descobrir. E quanto mais você descobre, mais você perde o norte.

O tempo da cidade –

Algumas cidades não mudam, outras parecem sofrer uma metamorfose. O tempo é cruel com nós três.

Os gazeteiros da madrugada já não lhe conhecem. E ela já não lhe reconhece. Você não mudou. Será que eles mudaram? Talvez eles continuem os mesmos, apenas não lembrem de você. Ou não querem.

As duas não lhe recepcionam como antes. Enquanto uma fecha as ruas que você achou conhecer, a outra se fecha em rugas que você quer conhecer.

Você se tornou apenas mais um. Possivelmente mais um turista em busca de algo excêntrico. Mais uma aventura qualquer que na longa estrada o tempo não haverá sequer de lembrar. Por mais que você ainda sinta o cheiro da cidade e o sabor daquela mocidade, ainda tão límpidos em seus sentidos, hoje são dois corpos estranhos.

Aquelas curvas não parecem mais tão sinuosas e você não consegue mais escutar os sinos tocando na praça. Eles continuam lá, apenas tocam para outros ouvidos que não os seus.

E ela, que recheou as próprias curvas com cavidades de um tempo que se passou e experiências que não viveu, hoje parece não se importar com a beleza de uma orla, com o cheiro de maresia. Muito menos com sabores e amores. E mesmo assim você retorna. Sem aviso, um chuvisco. Incômodo, recorrente.

Quando chega a noite depois de uma longa caminhada, chega também a vida real e o vôo que se aproxima para lhe levar de volta. Os garçons e comerciantes, ontem tão simpáticos como se morassem em uma pequena cidade do interior, não têm mais paciência para o grande fluxo de gente passando pelos lados, todos querendo contar histórias e prosas. E ela, escondida no terraço panorâmico do aeroporto, também já não aguenta lembrar das promessas do passado. Um passado que novamente se vai pelos ares. Fez questão de apagar, quase tão bem quanto você. Embora ambos saibam decorado todas as letras e números.

De olhos fechados para não ver o avião decolar, nem o mais presente dos tempos consegue apagar aquela imagem tão antiga, e ao mesmo tempo tão presente, de estar sentada na poltrona daquele mesmo avião, naquela mesma rota e naquele mesmo horário, rumo a um caminho desconhecido que deveria ter sido o fim, o último. O fim da busca e das promessas.

Acontece que a cidade não cresceu, apenas envelheceu, junto a todos nós. Perdeu as curvas, ganhou rugas; perdeu os sonhos, ganhou angústias. Atribuições nunca antes imaginadas, quiçá concretizadas.

A gente continua andando, meio sem saber para onde, por uma estrada sem horizonte. Cansaço não há, mas enquanto houver estrada ela sabe que você estará lá. À espera, talvez não na próxima curva, mas certamente sem medo de se molhar na chuva. Do tempo e da memória daquele chuvisco que insiste em retornar à cidade. Mesmo sem convite.