Enfim, o reconhecimento

Paulo Rebêlo
Diario de Pernambuco
03.maio.2009

Aventureiros e exploradores costumavam dizer que as relíquias mais importantes de um povo nunca seriam reveladas por completo aos forasteiros. Séculos depois, a ciência e a história provaram que tantas maravilhas naturais e históricas sempre estiveram debaixo do nosso nariz e, se não foram encontradas antes, é porque geralmente costumamos olhar primeiro para muito longe.

É no mínimo curioso conferir alguns nomes do Prêmio Humberto de Maracanã – Culturas Populares do Ministério da Cultura. Somente em Glória do Goitá, a 66 km do Recife, entre três premiados há dois representantes culturais que dificilmente teriam suas histórias e artes conhecidas fora de Pernambuco se continuassem a depender somente de datas festivas, carnaval e da “boa vontade” política típica das cidades além do eixo metropolitano.

flip163Até então longe dos holofotes, mestres da cultura popular têm trabalho premiado pelo Ministério da Cultura

Aos 81 anos, o Mestre Ciriaco do Coco pode se orgulhar de muita coisa que fez na vida, a começar pelos seus 24 filhos, 34 netos e 20 bisnetos. Nascido João Sebastião do Nascimento em 26 de junho de 1928, Mestre Ciriaco não existe no Google.

Parece besteira, mas em tempos de uma sociedade da informação cada vez mais conectada, é um reflexo notório de como ainda há tanto a percorrer pela cultura de um povo. E às vezes estamos todos tão próximos. No site oficial do prêmio, na página do Minc, o leitor encontra apenas o nome de batismo, não o nome pelo qual Ciriaco brinca e ensina rodas de coco há décadas na Zona Rural de Glória do Goitá, repassando conhecimento “até quando eu morrer”, como costuma dizer aos visitantes.

A saúde parece de ferro – não somente pela prole – e ajuda a esconder a idade. Ciriaco costuma percorrer à pé os 12 km que separam sua casa no Sítio Urubu até o centro de Glória do Goitá. A garganta não tem mais a força de outrora. Mesmo assim, quando começa a conduzir uma roda de coco, Ciriaco só vai embora quando desligam o som. Porque do contrário ele vira a noite cantando. E as filhas, dançando sem parar e sem cansar. Preocupa Dona Maria, a esposa, casada com o mestre desde 1954. Mas não preocupa Ciriaco. Com a humilde verba de R$ 10 mil repassada pelo Minc, ele resolveu não deixar mistérios para exploradores ou aventureiros e construiu a Casa do Coco para sua arte se perpetuar por meio dos filhos, netos e bisnetos. E quem mais quiser.

Além da recém-construída Casa do Coco, o dinheiro ajudou a comprar um novo equipamento de som (usado, modelo bem antigo) e algumas roupas novas para as coquistas. Em contrapartida, exigência do Ministério, deu aulas durante três dias em oficinas para alunos da rede pública de ensino no Sítio Urubu.

E as oficinas ajudaram a mostrar que Mestre Ciriaco do Coco pode até entrar no Google a partir de agora, mas certas coisas realmente não mudam nunca. Analfabeto e sem ter tido condições de estudar quando criança, Ciriaco entrou na sala de aula e não entendeu quando todas as 17 crianças não tinham sequer um caderno.

A vida difícil no interior e a falta de perspectivas do passado ilustram algumas das letras de suas músicas, mas nãorefletem no humor de Mestre Ciriaco, que já prepara uma grande festa na Casa do Coco para seu próximo aniversário com ajuda do filho Queno de Alagoinha (José João da Silva), o principal herdeiro da arte do pai.

Mestre Ciriaco é considerado o último representante do coco-de-roda na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Herdou a brincadeira ainda criança, quando aos 13 anos começou a seguir as rodas do pai e aos 14 conduziu sua primeira roda de coco.

Sobre o pai, ele desconversa um pouco, diz que não lembra tanto. Mas não deixa de cantar uma música por onde confessa a frustração de não ter sido permitido entrar numa escola, aprender a ler, a estudar. Hoje, Ciriaco é mestre e se preocupa em ensinar aos outros. E promete muito mais, agora com seu espaço próprio para os coquistas da região.

Resgate do maracatu

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José Fernando da Silva saiu de Glória do Goitá há 12 anos com um objetivo claro: resgatar uma nação de maracatu e passar a viver dela, depois de ter passado a vida inteira em outras nações.

Percorreu várias cidades da Zona da Mata sem sucesso. Não desistiu. Até encontrar o Maracatu Leão das Cordilheiras, em Carpina.

O herdeiro havia falecido e o maracatu estava mergulhado no marasmo há anos, pois a família não quis dar continuidade ao legado do mestre. “Procurei, me ofereci para tomar conta a partir dali, trazendo-o para Glória do Goitá e investindo tudo que podia”, explica José Fernando, o Zé Duarte, diretor do Maracatu Leão das Cordilheiras desde 2006, cuja sede fica justamente dentro de sua pequena casa no bairro Nova Glória.

Aos 40 anos, Zé Duarte está ciente de sua juventude frente ao legado que data de 1946 do Leão das Cordilheiras. E não esconde a expectativa quando admite estar desempregado, vivendo exclusivamente do pouco que consegue com o carnaval e em datas festivas em cidades próximas. Ele foi o segundo contemplado em Glória do Goitá do prêmio Humberto de Maracanã – Culturas Populares do Ministério da Cultura.

Com apenas cinco pessoas na família para gerenciar o maracatu, confeccionar as roupas e cuidar do orçamento, a família de Zé Duarte se une por uma causa cultural. A mãe, Maria dos Prazeres, 58, aprendeu na marra a confeccionar peças usadas pelos caboclos-de-lança, baianas, reis e rainhas. Com os R$ 10 mil repassados pelo Minc, foi difícil fazer algo de peso, além de saldar dívidas de anos anteriores. “Se não fosse o prêmio, dificilmente teríamos as condições de agora para seguir em frente, era muita dívida. Teve gente que até nos ameaçou, foi muito ruim”, explica Maria dos Prazeres.

Para cidades próximas, a família chega a cobrar R$ 5 mil às prefeituras por uma apresentação, montante a ser dividido entre os quase 80 integrantes quando o bloco sai completo, além de servir para zerar os custos – como bem explica a irmã Edvania Maria da Silva,professora da rede municipal e tesoureira informal do Leão das Cordilheiras.

Hoje eles dividem as atenções em Glória do Goitá com outro premiado do Ministério da Cultura, o Maracatu Carneiro Manso, fundado em 1950 e mais conhecido fora da Zona da Mata. Depois de 15 anos parado, o Carneiro Manso voltou às atividades apenas em 2004 com o trabalho de José Rinaldo da Silva, neto do fundador Manoel Francisco Correia. E a cada aparição eles mostram que podem voltar a ser a referência cultural de outros tempos, não apenas em Glória do Goitá, mas no estado inteiro.

Tudo pela cultura

Ex-secretário de cultura, ex-jogador de futebol, ex-treinador, ex-localizador de carros. Hoje, produtor de culturas populares. É assim que Lucas Alves se apresenta, após uma longa trajetória em Glória do Goitá, cidade onde nasceu e pela qual faz tudo para divulgar os mestres e as artes deste município na Zona da Mata Norte de Pernambuco.

Lucas Alves conhece os mestres de hoje e de ontem. É tratado quase como família e, ciente de sua vantagem educacional, procura ajudar na elaboração de projetos e fazer circular os editais e premiações. Sobre o prêmio Humberto de Maracanã, o qual premiou três manifestações culturais visitadas pelo Diario, Lucas Alves enfatiza a principal vantagem: o dinheiro não passa por prefeituras, intermediários, por ninguém. O mestre contemplado apenas abre uma conta bancária, em qualquer banco, e o Minc transfere a quantia sem burocracias.

Se o assunto é a difícil convivência entre política e cultura, Lucas Alves entende bem. Ex-secretário de cultura no governo anterior, garante não terinimigos e não ter nada contra a gestão alguma, mas que irá sempre batalhar pela cultura – mesmo que isso signifique não votar em aliados políticos de prefeito A ou B. Diz com a experiência de também já ter sido secretário de ação social e de esportes no município.

Enquanto o Recife ainda discutia a formatação de um Plano Municipal de Cultura – saiba mais no Diario de 5 de abril de 2009 – em Glória do Goitá há um plano municipal de cultura engavetado na Câmara de Vereadores desde 2004. “Fizemos conforme as diretrizes do Minc, tudo correto e visando o desenvolvimento da nossa cidade, mas não foi aprovado por questões puramente políticas”, lamenta Lucas Silva, depois de admitir que não quer mais saber de política partidária.