Vamos plantar combustível ou comida?

DP.05.junho.2008Interesses políticos e econômicos interferem no debate mundial sobre a relação entre o biocombustível e a crise de alimentos
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Paulo Rebêlo
Diario de Pernambuco – 05.junho.2008

Santo graal dos combustíveis limpos, o biocombustível tornou-se o epicentro de uma discussão traumática: a crise mundial de alimentos. Produzido sob a bandeira de não causar danos ao meio ambiente, a partir de grãos e de matéria-prima renovável, o combustível limpo e ambientalmente correto também inclui, em seu conjunto de peculiaridades, uma cruel disputa política e econômica cujos efeitos passam a largo dos ambientalistas.


Cenário pouco explorado por técnicos e defensores do meio ambiente, a luta por comida tem causado protestos violentos em vários países, de todos os continentes. Com destaque para o México e para regiões do sudeste asiático e África Central. O entrave não se restringe aos países subdesenvolvidos, visto que a escassez de insumos alimentícios generalizou-se. Nos Estados Unidos, uma das principais redes de atacado – Sam’s Club – resolveu limitar a compra de sacas de arroz, por exemplo. Por mês, cada unidade de varejo só pode adquirir até quatro sacas de 9 kg cada. Na União Européia, os governos começam a repensar os subsídios agrícolas e até mesmo a taxação sobre os grãos importados de países da América do Sul.

A disputa internacional entre defender o meio ambiente (com desenvolvimento econômico) e repensar a produção de alimentos destaca uma outra questão, ainda pouco explorada por especialistas. Trata-se do fantasma neomaltusiano, que ganhou notoriedade durante a Revolução Industrial, quando o matemático britânico Thomas Malthus alegou que a produção de alimentos crescia em escala aritmética (1,2,3,4,5…) enquanto a população cresce em escala geométrica (2,4,8,16,32…). O resultado da equação seria o caos com a falta de alimentos. Para reverter o quadro, ou a população voltaria às culturas de subsistência ou seria preciso criar políticas públicas para conter o aumento da demografia populacional desenfreada.

Hoje, os especialistas divergem sobre o futuro da atual crise e do que viria a ser um “biomaltusianismo”. Regra geral, não acreditam que o mundo chegue a um cenário similar a catástrofe pregada – e até agora nunca ocorrida – pelos seguidores de Malthus, os neomaltusianos. Engana-se, contudo, quem acredita que a política energética voltada aos biocombustíveis, e por tabela a preservação do meio ambiente, seja responsável pela alta mundial dos preços e no contingenciamento da agricultura.

O cientista político José Alexandre Hage, da Trevisan Escola de Negócios, é enfático ao classificar como “falácia” o discurso dos países desenvolvidos sobre a crise. “É uma briga de poder internacional e cada um tenta emplacar teses supostamente técnicas, supostamente científicas”, dispara. Bastante criticado por causa do desmatamento da Amazônia, o Brasil hoje é líder na produção do combustível limpo, seja por meio do etanol (álcool) ou através do cultivo de plantas como soja, mamona e algodão.

A resistência dos países desenvolvidos, contudo, é notória. O relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, Olivier de Schutter, já pediu oficialmente o congelamento dos investimentos e dos subsídios aos biocombustíveis. Um impacto certeiro no Brasil que, diferentemente dos países mais desenvolvidos, tem matéria-prima de sobra para a geração de biocombustível.

Modelo – O desmatamento de terras e o impacto dos biocombustíveis na agricultura podem ser ainda mais traumáticos para o meio ambiente do que se imagina. Quem supõe é Bob Doppelt, diretor de clima no Instituto de Ambiente Sustentável da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos. No caso, segundo Doppelt, o retorno econômico seria bem menor do que o passivo ambiental-energético que possa vir a existir a longo prazo. Em seu livro a ser lançado no segundo semestre deste ano – O Poder do Pensamento Sustentável – Bob Doppelt garante que a crise atual dos biocombustíveis, mesmo com o uso de matéria-prima fora do quadro de alimentos (como algas e o lixo doméstico) apresentam um risco ainda não calculado de afetar o meio ambiente e o desenvolvimento econômico das nações.

A série de protestos pela qual passam os mexicanos, hoje, é fruto de uma política pública errada, do ponto de vista econômico, vinda dos Estados Unidos. “Mas as implicações a longo prazo vão muito além da crise de alimentos”, pontua, questionando o desmatamento para produção de biocombustível.

ENTREVISTA [ Siwa Msangi ]

O Dr. Siwa Msangi é pesquisador do International Food Policy Research Institute (IFPRI), uma das principais referências em políticas públicas de nutrição mundial. Suas análises e pesquisas têm como foco fatores como os impactos biofísicos e socioeconômicos da alimentação no comércio, natureza e meio ambiente. Por e-mail, ele conversou com o Diario sobre os biocombustíveis e a crise de alimentos.

Até onde é verdade que a produção de biocombustíveis leva a um aumento generalizado dos preços de alimentos no mercado internacional?
A conexão entre biocombustível e preço de alimentos só pode ser aplicada em commodities específicas – nem todos os preços aumentaram e ainda será preciso muita pesquisa empírica (de campo) para comprovar essa tese. A maioria dos pesquisadores são relutantes em tentar especificar as causas para o cenário atual no mercado, por conta das interações complexas que ocorrem por trás disso tudo. O capital privado e a especulação parecem ter um papel crucial também.

Como as pessoas poderiam acreditar que, ao ajudar a proteger o meio ambiente (com o biocombustível) elas estariam contribuindo para aumentar o preço dos grãos?
A relação é pouco significativa no Brasil. Diferente do caso americano, com o etanol feito a partir de milho. Qualquer que seja o impacto gerado pelo Brasil no mercado mundial, possivelmente serão indiretos; ao mesmo tempo, o desmatamento para expandir a área cultivável para geração de biocombustível causará um impacto. Por outro lado, esse problema (do desmatamento) não é de agora e vai muito além dos biocombustíveis…