Cinema sobre o brega também é de uva

Paulo Rebêlo
Diario de Pernambuco

20.dezembro.2008

“Que galega boa do créu!”, exclama um guri de seus 12 anos de idade, correndo e chamando os amigos. São 16h de uma segunda-feira na beira-mar de Brasília Teimosa. O sol já começa a se pôr e nem parece dia de semana. A praia está lotada – de gente e de cerveja espalhada pelas mesas amarelas – e um certo alvoroço chama a atenção da criançada e dos marmanjos papudinhos de plantão.

O beijo é caliente. O aparente namorado encena um puxão de cabelo. Os dois rolam na areia. Brasília Teimosa vibra, enquanto o fotógrafo, o câmera e o diretor Sérgio Oliveira pedem, pela vigésima vez, para os curiosos se afastarem um pouco. Estão fazendo sombra sobre a areia da praia.

A galega não dança exatamente o créu. Estamos falando de Sâmara Monroe, dançarina da banda Vício Louco, figura das mais simpáticas e responsável pelo delírio masculino da ocasião. O namorado de ficção é Rodrigo Mell, da banda Kitara, compositor de hits hoje bem populares como “Chupa que é de uva” e “Meu novo namorado”. Entre uma cena e outra, os diretores Sérgio Oliveira e Petrônio de Lorena fazem os últimos ajustes no roteiro ficcional a ser incluso no documentário Faço de mim o que quero.

Não se surpreenda se o título parece familiar. Trata-se de refrão dos mais conhecidos na voz do Conde do Brega. Neste sábado, com apoio de um daqueles carrinho de CDs piratas circulando pela cidade, a equipe acaba de filmar este curta-metragem que deve ser tornar um ícone do movimento brega em Pernambuco. São 20 minutos, captados em vídeo digital e finalizados em 35mm, para mostrar quem são os principais artistas, cantores, dançarinos, empresários, produtores e toda esta indústria de entretenimento popular. Ou, nas palavras dos diretores, “uma cultura periférica criada, gerida e consumida por pessoas comuns”.

Sérgio e Petrônio prometem mostrar na película os cuidados com o figurino e a aparência, o contato dos artistas com o público, os fã-clubes, a expressão das danças. Um dos diferenciais é o formato de telenovela, adotado pela equipe no documentário e no pequeno trecho ficcional – as cenas rodadas em Brasília Teimosa, onde nomes consagrados do brega vão interpretar personagens diferentes.

Conde, Kelvis Duran, João do Morro, Renatinha É Show, Sâmara Monroe, entre outros, estão todos lá. No extra do documentário, o brinde é justamente o trecho de ficção. O roteiro é simples. Conflito de ciúmes dentro do bar, bate-boca, briga entre o casal e a subseqüente reconciliação, com o caliente beijo na areia ou dentro d’água.

E no meio de tudo isso, ainda temos João do Morro, o mais novo queridinho da cena musical pernambucana. Aqui, ele interpreta personagem homossexual, uma dançarina. Uma grande ironia, diante das críticas de ONGs e associações por conta de suas letras supostamente preconceituosas. Caso do hit Ei boyzinho, você é papa-frango, que não pára de tocar nas rádios e faz a alegria não somente da periferia retratada em suas músicas, mas, também, de patricinhas e mauricinhos à beira-mar.

Produzido pela Aroma Filmes, Faço de mim o que quero deve ter a edição concluída apenas no meio do ano. A equipe técnica inclui Pedro Urano (direção de fotografia), Evandro Lima (técnico de som), Roberta Garcia (produção), Renata Pinheiro (co-roteirista e arte) e participação de Kelvis Duran, Conde do Brega, Rodrigo Mell, DJ Binha, Banda Kitara, Banda Vício Louco e as bailarinas Sâmara Monroe, Renatinha É Show e Júnior.

Ninguém está cobrando cachê pelas participações. “Ao contrário, todos estão sendo super atenciosos e interessados, até mesmo para derrubar o preconceito da classe média contra eles”, revela Oliveira. Petrônio vai mais além, ao antecipar que o curta faz parte de um projeto maior para o brega em Pernambuco. Depois de Faço de mim o que quero, os diretores prometem começar a pré-produção do longa Faço o que quero de mim.

Fenômeno popular desafia preconceito

Tudo corre bem nos dias finais da filmagem de Faço de mim o que quero. As cenas mais calientes do trecho ficcional, protagonizadas por Rodrigo Mell e Sâmara Monroe na praia de Brasília Teimosa, fazem o delírio de quem curte aquela cerveja do final da tarde. De repente, ouve-se um grito.

Uma jovem, bebendo com outras colegas a poucos metros dali, caminha em direção à reportagem e aos diretores. Chuta o pau da barraca. “Isso é uma pouca vergonha, vocês deveriam ir para um motel! Aqui está cheio de criança, é muita sem-vergonhice”, dispara, para surpresa dos presentes em Brasília Teimosa.

Sem querer se identificar, ela reclama das cenas gravadas naquele momento. Grita, sugere que a equipe deveria filmar dentro de um quarto aquela “pouca vergonha”. A confusão se desfaz rapidamente. Vendendo cerveja na praia, Dona Maria (nome fictício) ironiza e não deixa por menos. “O povo daqui faz coisa muito pior na praia, na frente de todo mundo e ninguém tá nemaí”, ameniza.

O sol já foi embora, as filmagens do dia terminam. Em meio às conversas paralelas, sentado calmamente em outras das inúmeras mesas amarelas, o Conde do Brega parece alheio à confusão e dá o último gole no uísque antes de se levantar e ir embora. Vê tudo com olhos serenos, como se mentalmente cantasse à moça da confusão: “faço de mim o que quero, faço o que quero de mim”.

Academia – Ariano Suassuna que nos perdoe. Porque, meu bem, ninguém é perfeito e a vida é assim. Em Pernambuco, o fenômeno popular do brega ainda deve ser estudado com mais afinco pelos pesquisadores. Quem deseja conhecer melhor os impactos e repercussões pode procurar, na biblioteca da UFPE, a tese de mestrado A estética do brega: cultura de consumo e o corpo na periferia do Recife, de Fernando Israel Fontanella. A dissertação trabalha com os princípios apontados por Mikhail Bakhtin e por Friedrich Nietzsche de oposição entre uma cultura popular e carnavalesca.

No resumo do trabalho, o autor define logo: “uma sensibilidade híbrida como o brega, que une as formas propagadas pelas indústrias culturais e a relação carnavalesca com o corpo, deve ser vista como um ponto de convergência essencial para o entendimento do processo de assimilação da população suburbana do Recife no mundo do consumo”.